Homenagem a Samir Amin: O retorno do fascismo e o desafio da desconexão
“Tradução por Kenia Cardoso”
Edição especial, Agrarian South: Journal of Political Economy, Vol. 9, No. 1, 2020
Esta edição especial é uma homenagem a Samin Amin, que nos deixou em agosto de 2018. Amin foi um querido amigo, professor inspirador e companheiro que esteve nas linhas de frente das batalhas políticas e ideológicas mais decisivas de nosso tempo. Nascido no Egito em 1931, ele atingiu a maturidade depois da Segunda Guerra Mundial para se tornar uma luz-guia nas lutas anti-coloniais e anti-imperialistas das décadas seguintes. Ele foi um intelectual orgânico, com capacidade singular de manter vínculos com movimentos revolucionários e de libertação ao redor do mundo, enquanto exercia seu poder arguto de agregar ao pensamento marxista ou, até mesmo, reescrever aspectos fundamentais do materialismo histórico. De fato, há poucos pensadores nessa liga, e estamos honrados por ter recebido seu apoio na construção da Agrarian South Network (Rede Sul Agrário, ASN).
Amin integrou o Conselho Consultivo Internacional desta revista desde seu lançamento, em 2012, e contribuiu com diversos artigos ao decorrer dos anos. De fato, nosso Conselho Editorial, em associação com a Sam Moyo African Institute of Agrarian Studies [Instituto Africano de Estudos Agrários de Sam Moyo], havia decidido em 2018 convidar Amin para proferir a Segunda Palestra Memorial Anual de Sam Moyo, em janeiro de 2019, em Harare, mas, infelizmente, o convite não pode ser enviado. Amin, no entanto, prestou homenagem ao nosso irmão Sam anteriormente, contribuindo com um artigo à edição especial dedicada à memória de Sam Moyo em 2016 (republicada em nosso recente livro, Rethinking the Social Sciences with Sam Moyo [Repensando as Ciências Sociais com Sam Moyo, Tulika Books, 2020]). Samir e Sam tiveram uma relação sólida e solidária desde a década de 1970, quando Sam visitou Dakar como estudante de pós-graduação, e colaboraram, em parceria com outros membros deste Conselho, com iniciativas que Amin liderou ao longo dos anos, incluindo o Conselho para o Desenvolvimento de Pesquisa em Ciências Sociais em África (CODESRIA), o Fórum do Terceiro Mundo (TWF), e o Fórum Mundial por Alternativas (WFA).
Amin nos deixou uma autobiografia, A Life Looking Forward: Memoirs of an Independent Marxist (Zed Books, 2006) [Uma Vida Olhando Para o Futuro: Memórias de um Marxista Independente], e outras retrospectivas sobre sua trajetória intelectual, a exemplo de seu Re-reading the Postwar Period: An Intellectual Itinerary (Monthly Review Press, 1994) [Relendo o Período Pós-Guerra: Um itinerário intelectual]. Um segundo volume de suas memórias, The Long Revolution of the Global South: Toward a New Anti-imperialist International [A Longa Revolução do Sul Global: Rumo a uma Nova Internacional Anti-imperialista], foi postumamente publicado pela editora Monthly Review (2019). Nós não vamos, no presente editorial, revisar sua vasta contribuição, mas apenas colher inspirações de seus trabalhos para avançar a análise do presente. Uma das melhores percepções de Amin foi a de que as expectativas de Marx sobre o desenvolvimento do capitalismo – como apresentadas na famosa nota, ‘de te fabula narratur’, no primeiro prefácio d’O Capital, por meio do qual ele alertava países em desenvolvimento tardio sobre uma trajetória capitalista iminente à imagem do principal país capitalista – não poderia ser vindicada, uma vez que o capitalismo era imperialista por natureza e prosperou na polarização global. Não havia chance de uma “aproximação” (catching-up) generalizada para o Terceiro Mundo. Esse diagnóstico foi reforçado pela experiência alternativa da Revolução Chinesa, que levou Amin a concluir que a “desconexão” da lei mundial do valor era o único caminho plausível para o desenvolvimento nas periferias da economia global. Nós chamamos a atenção para esse insight e exortamos nossos leitores e leitoras a mantê-lo em mente enquanto pensamos o futuro nestes tempos tão conturbados.
Precisamos, do mesmo modo, fazer um balanço sobre o persistente desgaste gerado pelo neoliberalismo no Terceiro Mundo, um arcabouço de políticas que já persiste por quatro décadas, e que minou soberanias nacionais e alimentou tendências fascistas em muitas das nossas sociedades. As crescentes reservas de trabalho em proporções jamais vistas, a escassez e a instabilidade dos salários dos trabalhadores e dos rendimentos do campesinato, e a eterna crise da reprodução social combinaram-se todas com a falência da promessa de libertação para criar chão fértil de disseminação de movimentos reacionários. Fundamentalismos religiosos e comunalismos excludentes difundiram-se ao redor da África, da Ásia e da América Latina durante esse longo período. Amin era um astuto crítico do Islamismo fundamentalista em particular, e suas ideias se aplicam também a movimentos extremistas que rapinam seguidores do Cristianismo e do Hinduísmo. Amin insistiu que tais forças fascistas nas periferias são profundamente subservientes ao imperialismo e hostis à desconexão. Precisamos de uma compreensão mais profunda sobre dinâmicas reacionárias, o que explica a principal preocupação desta homenagem.
Esta edição especial reúne associados próximos da revista que foram tocados e inspirados por Amin, alguns dos quais colaboraram com ele durante muitos anos. Começando com Issa Shivji, seu artigo discute a crise da forma liberal-democrática, sua manifestação na ascensão da extrema direita e a resistência popular a ela. Esses desenvolvimentos encontraram recentemente sua expressão de forma concentrada na América Latina, que testemunhou um pêndulo oscilante entre governos ditatoriais e populismos radicais com histórica participação de milhares de trabalhadores e trabalhadoras, comunidades indígenas e setores da classe média, em particular estudantes. Shivji brevemente pesquisa a cena latino-americana por causa das lições importantes que ela tem a ensinar à esquerda internacional, mas também porque ela abre uma possível trajetória de desenvolvimentos políticos em África.
Prabhat Patnaik argumenta que, embora movimentos fascistas, semi-fascistas, proto-fascistas ou neo-fascistas existam em quase toda sociedade moderna como um fenômeno marginal, eles precisam ser distinguidos de partidos tradicionais e movimentos de diferentes matizes da direita. O último tipo, Patnaik argumenta, apareceria, sem dúvida, na sombra do primeiro; no entanto, o caráter sui generis do primeiro precisa ser sublinhado. O artigo explora as características específicas desses movimentos e coloca as seguintes perguntas: sob quais condições esses movimentos marginais passam a ocupar um lugar central? Qual é o fundamento de classe para que eles acessem o poder? Como explicamos a ascensão desses movimentos em tempos contemporâneos? E como podemos visualizar, na corrente conjuntura, a jornada posterior desses movimentos em situações onde eles acabam de fato ocupando o poder?
Amiya Bagchi fornece um breve olhar sobre a trajetória intelectual de Samir Amin para entender seu desenvolvimento como um marxista fortemente comprometido, que durante sua vida dedicou-se a mudar o mundo. Bagchi observa que todas as frustrações e derrotas da causa por ele abraçada apenas intensificaram sua determinação. O artigo traça a experiência de Amin com o planejamento econômico no Oeste da África e com alguns dos conceitos-chave que ele elaborou em prol da mudança social, incluindo o Eurocentrismo, a lei do valor mundial e o “mal-desenvolvimento”. Bagchi, por fim, dedica-se à preocupação de Amin com o Islã político, interpretado por ele como um acessório do imperialismo.
Ng’wanza Kamata revisita a influência de Samir Amin nos debates entre os(as) estudantes na Universidade de Dar es Salaam, nos anos 1980. Essa foi uma geração de estudantes, Kamata argumenta, que entrou nessa Universidade em seus últimos anos de glória como lugar de pensamento crítico e de uma cultura de livre circulação de ideias. Houve muitas contradições durante aquele tempo no campus, que variaram entre demandas por aumento do financiamento para o ensino superior a pressões para revisar o currículo de variados assuntos, especialmente nas ciências sociais, para acomodar e criar mais espaço para ideias burguesas. As ideias inovadoras de Amin em relação aos modos de produção, à economia mundial capitalista, dependência e emancipação inspirou estudantes e deixou um legado que precisa ser levado adiante.
Paris Yeros e Praveen Jha celebram a contribuição de Amin ao avançarem na análise sobre a longa crise do capitalismo monopolista. Esse artigo questiona teorias reducionistas e a-históricas sobre a crise para compreender a crise sistêmica terminal do capitalismo, a qual se desenvolveu na longa transição do colonialismo à era do domínio neocolonial. Os autores observam que Kwame Nkrumah havia nos alertado da natureza destrutiva dessa transição, e havia percebido nela, de modo astuto, o último estágio do imperialismo. O neocolonialismo tardio representa, os autores argumentam, o impasse dessa transição; seus elementos incluem, por um lado, o colapso do movimento de Bandung e do sistema soviético e, por outro, a permanente crise do capitalismo monopolista. Hoje, a concentração e centralização do capital persiste de modo concomitante com a escalada da acumulação primitiva e da guerra, enquanto a soberanias nacionais continuam a se desgastar nas periferias, onde uma gama de países, argumenta-se, sucumbe a uma nova situação semicolonial, e outros se tornam presas do fascismo.
Esta homenagem a Amin traz mais um e mais duradouro compromisso com seu legado, que é a inauguração do Samir Amin Young Scholars’s Prize in Political Economy of Development [Prêmio Samir Amin para Jovens Pesquisadores em Economia Política do Desenvolvimento]. O prêmio instituído pelo Conselho Editorial da Agrarian South em honra à coragem intelectual exemplar de Samir Amin e à sua contribuição inovadora ao estudo da economia capitalista mundial e aos desafios enfrentados especialmente pelos povos do Sul. O prêmio foi anunciado em 2019 e, junto a ele, um convite para artigos anteriormente não publicados foi divulgado. A elegibilidade para o prêmio foi limitada a estudantes de mestrado e doutorado, ou aqueles que receberam doutorado dentro dos últimos cinco anos. No entanto, artigos adequados não foram recebidos, o que nos levou a mudar a estratégia e adotar a prática comum de premiar autores cujos artigos já foram publicados na revista. Resolvemos, portanto, considerar artigos publicados em Agrarian South no decorrer dos últimos dois anos por autores que se adequaram aos critérios de elegibilidade – e de estabelecer este como o procedimento padrão de elegibilidade. De agora em diante, o Prêmio será concedido a cada dois anos a um(a) autor(a) cujo artigo tenha sido publicado em nossa revista e que é aluno(a) de pós-graduação ou tenha recebido o grau de doutorado em até cinco anos da publicação.
Para o primeiro Prêmio Samir Amin de Jovens Pesquisadores, o Conselho Editorial considerou seis artigos conforme os critérios de elegibilidade. Estamos orgulhosos de anunciar que o Conselho Editorial concedeu o Prêmio a Manish Kumar, estudante de doutorado na Universidade de Jawaharlal Nehru, pelo artigo intitulado “India’s Rice Export: What is in it for farmers?’ [Exportação de arroz da Índia: o que há para agricultores?], publicado na edição especial sobre Global Agricultural Value Systems: Trends and Alternatives [Sistemas Globais de Valor Agrícolas: Tendências e Alternativas] (Vol. 8, Nos. 1-2, 2019). O artigo de Kumar oferece um estudo conceitualmente refinado e empiricamente rigoroso sobre os impactos econômicos das exportações de arroz sobre os agricultores e agricultoras, e sobre outros atores envolvidos nos sistemas de arroz em casca na Índia. Ele observa a importância das exportações de arroz na Índia, que representam a maior parcela das exportações agrícolas do país, e o cultivo do arroz, que envolve quase metade das famílias agrícolas da Índia. Kumar analisa as tendências de produção do arroz basmati e não-basmati desde a liberalização do comércio e demonstra diferenciação de cada safra entre as classes de produtores, bem como a vulnerabilidade da especialização excessiva manifesta na redução dos estoques-reserva e exposição a preços internacionais voláteis. Kumar expõe em detalhes os mecanismos pelos quais pequenos produtores são espremidos nesses sistemas de valor, levantando forte evidência dos efeitos perversos da exposição de pequenos produtores à influência das forças globais de mercado. Nossas congratulações a Manish Kumar!
Para concluir, precisamos também acrescentar, em triste nota, que além da perda de Samir Amin, nossa revista perdeu mais dois membros do Conselho Consultivo Internacional nos últimos dois anos. Entre eles estão Theotonio dos Santos (1936-2018) e Reginaldo de Moraes (1950-2019), ambos brasileiros, grandes pensadores, professores inspiradores e seres humanos de enorme coração. Theotonio era mais conhecido por sua contribuição à Teoria da Dependência e por seu papel de destaque no desenvolvimento das ciências sociais na América Latina. Ele foi professor Emérito na Universidade Federal Fluminense no Rio de Janeiro e ocupou cátedra da UNESCO em Economia Global e Desenvolvimento Sustentável. Reginaldo era um pensador versátil, um filósofo de formação, que questionou o funcionamento interno do neoliberalismo ao longo de muitos anos. Ele foi um professor devoto que ensinou gerações de estudantes em ciência política e relações internacionais. Ele foi professor da Universidade de Campinas (Unicamp), em São Paulo. Agrarian South pretende honrar suas contribuições em tempo devido.
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