por Paris Yeros
Universidade Federal do ABC (UFABC), Brasil – Dezembro 2023
O imperialismo coletivo da Tríade (EUA-UE-Japão) evoluiu após a Segunda Guerra Mundial sob a égide dos Estados Unidos para dar coerência estratégica à expansão do capitalismo monopolista contra o Leste socialista e o Sul emergente. Seu objetivo era enfrentar resistências sem precedentes ao capitalismo monopolista, tanto pelo lado do sistema soviético, que havia vencido sobre o nazismo, como no Terceiro Mundo em vias de descolonização. Essa contradição era a essência da rivalidade sistêmica da Guerra Fria. As suas origens se encontram justamente nos dois grandes acontecimentos anti-imperialistas do século XX: a revolução socialista e a descolonização geral.
Diz-se que o pós-guerra configurou um sistema “bipolar” entre Leste e Oeste. De fato o conflito foi muito maior. Consistia numa contradição sistêmica entre o imperialismo e todas as forças anti-imperialistas, não apenas aquelas provenientes do Leste. E mais: nessa contradição, a essência do conflito, mesmo entre Leste e Oeste, logo passou a girar em torno das forças de libertação nacional dos povos do Terceiro Mundo. Isto é, as lutas de libertação nacional se tornaram a principal força motriz da rivalidade sistêmica do pós-guerra. Elas encontravam na União Soviética um contrapeso sistêmico ao imperialismo, senão apoio direto, enquanto o próprio conflito Leste-Oeste ganhava o seu dinamismo nas lutas de libertação nas periferias. Não é por acaso que a maior confrontação nuclear da Guerra Fria se deu em função da revolução cubana.
Ouve-se dizer também que o Ocidente “ganhou” a Guerra Fria. Nos anos 1990, os neoliberais em sua euforia chegaram a postular até o “fim da história”, enquanto os seus alter egos “realistas” contemplavam o caminho e os meios para se consolidar um mundo “unipolar”. Um de seus feitos foi impor os seus termos no nosso debate, difundindo não apenas teorias neoliberais, culturalistas etc., mas também teorias de “polaridade” e “geopolítica”, entre outras, emprestadas da ciência política norte-americana, alheias à teoria do imperialismo da tradição marxista-leninista. A presente intervenção busca apresentar alguns esclarecimentos a respeito desses conceitos.
É certo que os termos da teoria da polaridade hoje em dia já foram apropriados por forças anti-imperialistas, ocupando lugar central nas nossas reflexões. Contudo, ainda há necessidade de esclarecimento e adaptação, se é para persistirmos no uso de tais conceitos, pois em sua forma original eles passam longe de nossos propósitos. Sobretudo, a sua ênfase analítica em “grandes potências” desvia o foco daquela que Marx chamou de “sexta grande potência”, o poder popular revolucionário. Tampouco esclarecem os desafios do desenvolvimento mundial postos aos países periféricos, que necessitam hoje, mais do que nunca, que as suas relações econômicas externas sejam subordinadas ao poder da soberania popular.
O termo mais preciso para essa análise, a nosso ver, seria “policentrismo”. Postula uma multiplicidade de centros na qual países e regiões do Sul teriam condições de seguir caminhos de desenvolvimento soberano e popular, isto é, “desconectar-se” da lei do valor dominado pelo imperialismo. Mas, afinal, seja como for a preferência terminológica, o que importa mesmo é o conteúdo da análise.
Quem ganhou a Guerra Fria?
A teoria da polaridade se estendeu ao pós-Guerra Fria ao contemplar um “momento unipolar”. Porém, não é possível sustentar que houve uma clara vitória do Ocidente. O capitalismo monopolista não emergiu da Guerra Fria ileso. Já estava em crise permanente, desde meados da década de 1960, devido à sua própria lógica contraditória e sobretudo o seu conflito com o Leste e o Sul. Saiu da Guerra Fria gravemente ferido.
O que aconteceu a partir dos anos 1970 foi uma ação retrógrada visando o resgate da dominação imperialista. Financeirização, redolarização via o petróleo, novas ondas de exportação de capital, escalada militar e saltos tecnológicos relançaram o imperialismo coletivo. Decerto, essa revanche chegou a empurrar o sistema soviético para além de seus limites e ao mesmo tempo consolidou a transição neocolonial dos países do Sul. Seria mais apropriado ver nessa fase tardia do neocolonialismo um longo impasse na transição sistêmica. Pois as contradições fundamentais do capitalismo monopolista nunca se resolveram; e a financeirização, as exportações de capitais e a militarização, apesar dos saltos tecnológicos envolvidos, tornaram-se todos elementos de uma decadência secular.
O saldo líquido não foi inteiramente a favor do imperialismo. Apesar de selar a transição neocolonial na maior parte do Terceiro Mundo, com a notável exceção da China, o relançamento do imperialismo coletivo não reverteu a descolonização, isto é, não conseguiu derrubar o sistema generalizado de soberania nacional conquistado pelos povos do Terceiro Mundo com a ajuda da União Soviética. Mesmo após quase meio século de neoliberalismo, o regime não foi suprimido ou superado.
Há certamente uma degradação do regime de soberania nacional nas periferias. Decorre da agressão imperialista constante e da polarização social avançada, em especial do crescimento gigantesco das reservas de trabalho, gerando forças neofascistas no interior dos países e levando até mesmo a novas situações semicoloniais em uma série de países que sucumbiram à invasão imperialista e à fragmentação territorial. Porém, cabe enfatizar novamente, que o regime geral de soberania nacional não foi derrubado até hoje, e esta é uma vitória consagrada dos povos do Sul.
Tampouco o fim da Guerra Fria pôs fim ao movimento comunista, apesar do colapso e desmembramento da União Soviética. O movimento comunista recuou, mas também passou por transformações ao ponto de fazer um salto econômico espetacular, especialmente na China, como também importantes inovações em Cuba sob o peso do bloqueio econômico. Pergunta-se o óbvio: é possível ainda dizer hoje que o Ocidente venceu a Guerra Fria?
Seria mais preciso dizer que o impasse do neocolonialismo tardio está sendo minado pelo avanço novamente das forças antiimperialistas, que desta vez encontram um contrapeso sistêmico na própria China. Mesmo hoje não se justifica um foco analítico em “grandes potências”. Por um lado, o nacionalismo nas periferias vem se radicalizando e, por outro, a trajetória da China permanece intimamente ligada ao Terceiro Mundo. O futuro da própria China dependerá do caráter dessa relação.
Ao longo desse impasse sistêmico, a aliança transatlântica manteve a sua coesão efetiva e a sua insistência em prol do expansionismo e da agressão, dado que o propósito único da OTAN sempre foi a destruição dos obstáculos ao capitalismo monopolista. A aliança expandiu as suas operações para a África e a Ásia, devorou a Europa do Leste e continuou a ameaçar o desmembramento da Rússia. Mas internamente, a mesma lógica monopolista, uma vez financeirazada e generalizada, fez estancar os salários e erodir a política de pleno emprego, desfazendo os pactos sociais e os pilares materiais da própria experiência social-democracia. Sob tais condições, o retorno ao fascismo era questão de tempo, em ambos os lados do Atlântico. Há até quem acreditou que o neofascismo iria geral uma crise na própria OTAN, que a chegada de Trump iria colocar em cheque a sua essência liberal! Mas o liberalismo nunca foi a razão de ser da OTAN e, sim, a generalização do capitalismo monopolista.
A retomada da Guerra Fria
As contradições sistêmicas que movimentaram o longo impasse do neocolonialismo tardio estão hoje se acirrando. Se a emergência da China é a força que mais aproveitou da decadência do imperialismo coletivo e minou a infraestrutura econômica do sistema neocolonial, a violenta confrontação da OTAN com a Rússia na Ucrânia e o genocídio na Palestina, configuram no seu conjunto um ponto de inflexão.
A Rússia, como o principal país herdeiro da União Soviética – integrando grande parte do seu território, do seu povo e da sua memória, e beneficiando-se da sua capacidade tecnológica, recursos energéticos e energia nuclear – continuou a apresentar obstáculos ao expansionismo da OTAN. O foco da disputa voltou para a Ucrânia, que sempre teve um valor estratégico superior nos desenhos da OTAN, como do exército nazista antes. A transformação da Ucrânia na ponta de lança do imperialismo era questão de tempo.
A instrumentalização da Ucrânia pela OTAN foi tudo menos um exercício de soberania. A soberania nacional é, acima de tudo, uma fórmula antiimperialista para o exercício do poder popular. A instrumentalização da Ucrânia através de um golpe, promoção de forças neonazistas no aparelho de Estado, a sua tutela pelo aparato militar da OTAN e lançamento de uma guerra contra minorias étnicas russas no leste do país, em Donbass, foi um ato de liquidação de soberania. A Ucrânia mergulhou numa situação semicolonial simulada, sem que fosse diretamente ocupada e dividida, mas mesmo assim reprogramada para lançar uma guerra contra si mesma e para apontar as armas para a Rússia. Nessa situação, qualquer tentativa de incorporar o país na OTAN, com tropas e misseis na fronteira, foi obviamente um casus belli para a Rússia. A Rússia tinha o direito de intervir.
A intervenção foi realizada contra um consolidado eixo OTAN-Neonazista. Ao longo dos últimos dois anos, uma guerra horrível tem sido travada às custas do povo ucraniano e da juventude de ambos os lados, recrutada na campanha da guerra. Longe de seus supostos ideários liberais, a OTAN mostrou mais uma vez que não tem constrangimento nenhum em apoiar forças nazistas fora das suas fronteiras, custe o que custar, e patrocinar guerras no ultramar, aumentando sistematicamente as apostas com cada vez maiores aportes orçamentários e transferências de armas pesadas para a Ucrânia. A OTAN também duplicou o tamanho da sua fronteira terrestre com a Rússia pela entrada da Finlândia na aliança em abril deste ano. Uma extensa frente contra a Rússia tomou forma mais uma vez, com ideologia supremacista. A capacidade da OTAN para a provocação e a escalada do conflito está sempre dada, mesmo que atualmente haja um evidente desgaste com a guerra.
Cabe acrescentar que essa guerra é também um trágico alerta sobre o que acontece quando um país mais vulnerável não consegue sustentar uma política de Não Alinhamento Positivo diante Estados mais capazes de defender os seus interesses estratégicos. Afinal, essa foi a lição histórica mais importante do Movimento de Bandung: a razão do não-alinhamento justamente a preservação de Estados menores contra a sua incineração numa briga entre os grandes.
Se essa guerra na Ucrânia é uma extensão da dimensão Leste-Oeste da Guerra Fria, a guerra na Palestina, que estourou novamente em outubro deste ano, é a essência do mesmo conflito Norte-Sul de sempre. Trata-se de uma clássica situação de assentamento colonial patrocinada pelo imperialismo, uma das últimas situações coloniais não resolvidas do século passado e a mais consequente para a transição sistêmica no século XXI. O Estado sionista nunca deixou de cumprir as suas funções essenciais, objetivando a dominação dos povos da região, a degradação das suas soberanias e o controle sobre os seus recursos energéticos e as rotas comerciais.
O genocídio em curso contra o povo palestino é a prova cabal da barbárie do imperialismo coletivo liderado pelos Estados Unidos e da natureza fascista de seus desenhos estratégicos. Assistimos à uma limpeza étnica declarada contra um povo sob ocupação, perpetrada pelo Estado sionista e apoiada pelos Estados Unidos e pela União Europeia. Dezesseis mil palestinos já morreram em dois meses, desde 7 de outubro, dos quais 40 por cento foram crianças, e mais quarenta mil ficaram feridos nos bombardeios. Se havia alguma dúvida ainda sobre o caráter civilizacional do Ocidente, já virou pó nos bombardeios de Gaza.
Essa tragédia, por sua vez, é também uma demonstração de como evoluirá a partir de agora a chamada “transição multipolar”: enquanto as potências semiperiféricas buscam jogar em todos os tabuleiros, em um novo fenômeno de “multialinhamento”, o povo trabalhador do Terceiro Mundo, preso e asfixiado em reservas de trabalho irá se rebelar e forçar o avanço da transição sistêmica.
Cabe acrescentar que a única possibilidade de fissuras por dentro da OTAN é através da implosão de um ou mais governos sob pressão popular. Não podemos descartar essa possibilidade em nosso tempo, embora o proletariado no Ocidente ainda falte organização e consciência histórica. Mas a dinâmica neoliberal-neofascista dirigida pelos monopólios dentro das suas arenas nacionais tomou conta da região toda e colocou-a num caminho de declínio e polarização social que também alimenta revoltas internamente.
Ademais, a marginalização das comunidades imigrantes de origem africana e asiática acrescenta um fator crucial no impulso das revoltas. As recentes manifestações maciças contra o genocídio palestino em muitos casos impulsionaram para à frente da cena política as próprias comunidades racialmente oprimidas. Essas fissuras irão se aprofundar. A exata coloração ideológica de eventuais rachaduras continua imprevisível, e sabemos que o fascismo está sempre a postos. Mas no século XXI não está mais dado o curso desta disputa.
Desafios da transição sistêmica
As fissuras no plano global estão mais maduras. A infraestrutura do domínio neocolonial está cedendo sob o peso da crise permanente do imperialismo e da emergência chinesa. Nos últimos vinte anos, a economia mundial passou para um padrão de comércio inteiramente novo cujo centro hoje é a China, sendo este país o principal parceiro comercial da grande maioria dos países do mundo. A China também é uma enorme fonte de recursos financeiros, que o próprio Ocidente absorve para se sustentar.
A função da resistência especificamente econômica por parte da Rússia é também notável nesta conjuntura. Além de bloquear o avanço militar da OTAN, também enfrentou com sucesso o regime de sanções unilaterais, resguardando a sua moeda e firmando novas parcerias comercias. Ademais, as pesadas sanções impostas sobre a Rússia e o confisco de 300 bilhões de suas reservas em dólar fortaleceram a aproximação da Rússia com a China e o Irã. Tal parceria estratégica hoje apresenta novas possibilidades de transações econômicas e comercialização do petróleo fora do dólar e de Wall Street, isto é, fora dos mecanismos operacionais do regime de sanções unilaterais. As rachaduras prometem ampliar cada vez mais o espaço de manobra para o Terceiro Mundo e, inclusive, para as revoltas populares.
Contudo, uma ressalva está em ordem: salvo um repentino colapso financeiro em Wall Street, que também não pode ser descartado dado o grau de endividamento, o caminho para um sistema monetário e financeiro alternativo permanece longo. Isso vale para a iniciativa dos BRICS, liderada pela China, que teoricamente tem o potencial de deslocar ainda mais a correção de forças. Mas o futuro dos BRICS dependerá do grau de coesão de um grupo de países cujos sistemas políticos, na sua maioria, continuam imprevisíveis ou pouco confiáveis em termos estratégicos, que mantem simultaneamente relações econômicas e/ou militares estreitas com o imperialismo, nessa fase de “multialinhamento”. As suas posturas internacionais ainda não têm a convicção necessária para sustentar um avanço robusto contra estrutura econômica de dominação neocolonial. Este é o caso da maioria dos membros, nomeadamente a Arábia Saudita, a Argentina, o Egito, os Emirados Árabes, a Índia e o próprio Brasil.
Se avaliado pela estrutura neocolonial ainda em vigor nesta fase do imperialismo, o novo mundo policêntrico – comumente denominado “multipolar” – ainda não tomou forma, por mais que esteja a caminho. Seja como for a conveniência terminológica, cabe enfatizar que o termo “policentrismo” diz respeito não apenas a distribuição de um conjunto de capacidades militares, econômicas e outras, mas a capacidade por parte de países e regiões de se desconectarem da lei do valor mundial dominada pelo imperialismo e construir um caminho de desenvolvimento autocentrado, soberano e popular.
A construção de um mundo policêntrico, nos termos aqui colocados, pressupõe a identificação mais precisa do conjunto de desafios que vigoram nesta crise permanente. Nestes termos, a transição sistêmica está ainda incipiente; e a contradição principal permanece a mesma entre o imperialismo e os povos trabalhadores do Terceiro Mundo. Contudo, a contradição principal adquire novos contornos à medida que se aprofunda a crise do capitalismo monopolista, agregando os seguintes elementos.
- A expansão maciça das reservas de trabalho na economia mundial e a sua concentração nas periferias do sistema, configurando formações sociais historicamente distintas e duradouras que apresentam desafios inéditos pela gravidade da crise da reprodução social que as convulsiona.
- A concentração e, ao mesmo tempo, a absorção cada vez mais estreita das burguesias periféricas nos sistemas globais de valor sob o comando do capitalismo monopolista-financeiro, embora com deslocamentos na orientação comercial rumo à China e, em alguns contextos condicionados pela radicalização anti-imperialista e sanções unilaterais, a emergência de frações burguesas patrióticas associadas à incentivos estatais (China, Rússia, Irã, Iêmen, Zimbábue, Venezuela, etc.).
- A emergência econômica da China no próprio terreno económico da Tríade, isto é, no comércio, nas finanças e na tecnologia, e ademais, a integração econômica do mundo à sua trajetória.
- A aceleração do aquecimento global e de fenômenos climáticos extremos e especialmente catastróficos nos trópicos justamente onde se concentram as reservas de trabalho.
- A inauguração de uma longa época marcada por pressões insurrecionais permanentes, que emanam da polarização social já avançada, onde novamente se concentram as reservas de trabalho.
- A escalada militar generalizada do Ocidente, expandindo a sua presença militar ao redor do mundo, articulando novas alianças e atingindo um novo patamar de hostilidades, chegando a armar um confronto nas fronteiras de um país membro do Conselho de Segurança da ONU e agora promovendo sem constrangimento moral nenhum um genocídio contra o povo palestino.
Se analisarmos corretamente o rumo deste conjunto de contradições devemos concluir que, se não se consolidar a transição ao policentrismo a tempo, o que está na agenda do século XXI é o genocídio em série contra os povos trabalhadores da África, da Ásia e da América Latina e do Caribe, que enfrentam uma crise existencial.
Não há transição que não seja ao socialismo
A construção de um mundo policêntrico, que certamente será um caminho longo, implica sobretudo na construção do próprio socialismo. E nessa construção, seria óbvio olhar para a China e a sua liderança. Porém, os limites da própria China precisam ser analisados, especialmente na conjuntura da intensificação da contradição sistêmica.
Por um lado, a China alavancou inovações institucionais no seu sistema de planificação central que a blindaram dos piores efeitos da lei do valor mundial, criando condições para um caminho de desenvolvimento próprio. Apesar das concessões extensivas ao capitalismo, é o país que navegou os desafios da transformação econômica com mais clareza, inovação e agilidade, sem abrir mão de ganhos substantivos da Revolução de 1949, especialmente em sua questão agrária. Também, demonstrou que o capitalismo só é possível funcionar para o benefício dos povos da periferia do sistema sob controle de um Partido Comunista. Afinal, esse sempre foi o sentido da acumulação primitiva socialista.
Contudo, uma das grandes questões postas a essa trajetória socialista única, é o futuro das suas relações econômicas com as periferias do sistema. Na medida em que uma nova rodada de acumulação socialista primitiva ocorreu, ela hoje tem uma dimensão global, diferente de tudo que vimos antes. Vale lembrar que a União Soviética não teve relações econômicas substantivas com a maior parte do Terceiro Mundo, com as notáveis exceções da Índia, da China, e do Egito por certo tempo, e de Cuba até o final. O caminho que essa nova relação econômica mundial tomará é crucial para a transição policêntrica.
O máximo que se pode esperar é que a China continue a circular excedentes via a Iniciativa Cinturão e Rota, que construa novas e modernas infraestruturas, que compartilhe tecnologias avançadas, que plante sementes para a industrialização periférica. Mas nada disso será suficiente para enfrentarmos os desafios postos hoje ao Terceiro Mundo. A China não deslocará a lei do valor ao ponto de favorecer uma industrialização periférica capitalista generalizada, tampouco irão suprimir a lei do valor fora das suas fronteiras pela produção de utilidades públicas à altura da crise de reprodução social atual.
Nas condições atuais, a transição policêntrica não dependerá da China e, sim, de nós, da nossa insurgência, das nossas capacidades de alterar a correlação de forças. A salvação não vem de fora – como também não veio de fora na Guerra Fria do século passado.
Tomar o rumo policêntrico singifica coisas muito concretas para nós: absorver as enormes reservas de trabalho concentradas no Terceiro Mundo em condições dignas de vida; estabilizar e equilibrar, econômica, social e politicamente, as relações campo-cidade via reformas agrárias radicais; planificar uma industrialização soberana, rural e urbana, sem medo de desmontar e recompor cadeias produtivas; e enfrentar às mudanças climáticas em diversos níveis de ação e especialmente por meio de novas formas de propriedade de caráter socialista para estabelecer uma nova relação entre economia e natureza.
A alteração das relações de força em escala nacional e regional ao redor das periferias permanece crucial para o conjunto da transição sistêmica. E o prazo não é menos crucial: a transição tem que ocorrer, substantivamente, até meados do século XXI, se é para se evitar o crescimento catastrófico das reservas de trabalho e as piores consequências do aquecimento global.
Existe outra medida da transição ao policentrismo senão pela transição ao socialismo? Já nos encontramos numa situação pré-revolucionária mundial, sob permanente pressão insurrecional nas periferias, que não pode mais ser ignorada. Nesse sentido, cabe lembrar uma afirmação de Marx da época em que “cinco grandes potências” disputavam o poder do continente europeu e do ultramar: o que realmente importa, afirmou Marx, é a “sexta grande potência”. Nas suas palavras, escritas em fevereiro de 1854 (tradução nossa):
[…] não devemos esquecer que existe uma sexta potência na Europa, que em certos momentos afirma a sua supremacia sobre o conjunto das chamadas cinco “grandes” potências, e as faz tremer, cada uma delas. Esse poder é a Revolução. Longa, silenciosa e cansada, é agora novamente chamada à ação pela crise comercial e pela a escassez de comida.
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