A Luta por Soberania Epistêmica no Sul: Uma Homenagem a Sam Moyo[1]
Praveen Jha, Paris Yeros e Walter Chambati[2]
Trad. Kenia Cardoso
Sam Moyo foi herdeiro da geração de pensadores pan-africanistas que lançou a base intelectual de uma África libertada e inaugurou uma nova vocação científica dedicada a restaurar a civilização africana em seu devido lugar. Sam foi treinado durante o ápice desse movimento no final dos anos 1970, e atingiu a maioridade intelectual quando o movimento sofreu um revés histórico, precisamente no momento em que os programas de ajuste estrutural promoveram um ataque à pesquisa, ensino e fontes autônomas de pensamento. Salários, orçamentos e pessoal foram cortados, enquanto a perspectiva de libertação foi estigmatizada, interrompida e cooptada (MKANDAWIRE, 1995, 2005; ONIMODE, 1988; MAMDANI, 2007). Dalí então, os ajustes neoliberais colocaram em sua mira a produção de conhecimento autônomo em todos os lugares, ao longo do Sul e, até mesmo, no Norte.
Sam tornou-se um pilar de resistência nas lutas subsequentes pela soberania epistêmica – e ele não estava sozinho. Sua principal fonte de força era o Conselho para o Desenvolvimento da Pesquisa em Ciências Sociais em África (CODESRIA), do qual ele se tornou vice-presidente (1998–2001) e presidente (2008–2011), assim como uma série de iniciativas globais de base e perspectivas Sul-Sul, nomeadamente, o Fórum do Terceiro Mundo (FTM), no qual ele participou ao longo de muitos anos, Fórum Mundial para Alternativas (FMA), do qual ele se tornou vice-presidente para a África Austral, e a Rede do Sul Agrário (Agrarian South Network), que ele fundou. Em casa, no Zimbabwe, ele também fundou o Instituto Africano para Estudos Agrários (AIAS) em 2002, em outra conjuntura crucial, quando o movimento de libertação estava entrando em novo processo de radicalização.
Sam teve a rara habilidade de combinar luta de retaguarda em defesa de instituições existentes com iniciativas vanguardistas de construir novas capacidades e solidariedades para pesquisa autônoma na África e no Sul. De fato, Sam tinha forte convicção de que a reconstrução das ciências sociais tinha que ser iniciada da África e do Sul, para a África e o Sul, e para o mundo como um todo. Se não estava sozinho nisso, ele certamente tinha uma particularmente teimosa perseverança em estabelecer novos padrões epistêmicos para as gerações subsequentes.
A seguir, traçamos algumas das contribuições mais importantes de Sam, que continuarão a requerer reflexão. Nós, é claro, temos o benefício de declarações magistrais sobre a vida e trabalho de Sam já escritas desde sua morte.[1] De nossa parte, esperamos chamar atenção primeiro à trajetória de Sam na tradição pan-Africanista de economia política. Isso segue sendo importante porque Sam teve impacto em mais de uma tradição ou área de estudos, de modo que se corre o risco de perder de vista as origens pan-Africanistas de seu pensamento, ou até mesmo diminuir a tradição pan-Africanista ao assimilá-la em outras. Mesmo que, até o momento, não tenhamos um balanço apropriado do caráter e trajetória dessa tradição da economia política, Sam foi insistente em reconhecê-la e consciente de seu lugar nela. Nós iremos, em seguida, chamar atenção para o significado de seus posicionamentos nas questões fundiária, agrária e nacional do Zimbabwe. Além da coragem inspiradora e do rigor que ele demonstrava ao defender uma reforma agrária radical, seu papel foi fundamental para restaurar questões latifundiárias e agrárias à agenda de pesquisa global. Finalmente, traçaremos o papel de liderança de Sam na construção da solidariedade tricontinental em direção a uma agenda de pesquisa global e identificaremos alguns princípios epistemológicos que emergem.
A tradição Pan-Africanista da Economia Política
Sam Moyo foi treinado em, e mais tarde se tornou protagonista de um corpo distinto de pensamento em economia política que floresceu na tradição pan-Africanista depois da independência. A descolonização abriu um espaço sem precedentes para investimento e infraestrutura, incluindo para a construção de universidades e centros de pesquisa com o potencial de estabelecer uma agenda de pesquisa própria e treinar uma nova geração de intelectuais e planejadores de desenvolvimento. A missão nesses tempos eufóricos era nada menos do que a libertação total do continente, acelerado desenvolvimento e renovação civilizacional. E mesmo que a relação dos intelectuais pan-Africanistas com os Estados recém-independentes fosse repleta de tensão, a tradição que se formava se aventurou a pensar tanto a história da África quanto a mundial por apropriar-se de princípios de economia política em seus próprios termos, principalmente dentro do materialismo histórico. Ao fazê-lo, entrou em conflito com o prevalente cânone eurocêntrico e economicista que exerceu hegemonia dentro e fora da África, e impôs conceitos construídos de uma Europa idealizada ou, mesmo, de uma experiência asiática ainda com pretensões universalistas. Nas palavras de um dos principais pensadores pan-Africanistas, essa foi uma batalha para a “indigenização das ciências sociais”, consistente com as batalhas por libertação nacional e regional (MAFEJE, 1991:7, tradução nossa).
Ao lado de vários novos centros de pensamento que brotaram em capitais ao longo da África libertada, de Dar es Salaam a Ibadan e Dakar, também emergiu uma clara dinâmica continental e unificada na definição da agenda de pesquisa em economia política e seus termos de referência. De forma alguma isso implicou consenso, nem sua emergência suplantou intelectuais do Norte e expatriados e seus debates próprios (MKANDAWIRE, 2005). Tampouco, de fato, ganhou devido reconhecimento mundial como uma contribuição autônoma para as ciências sociais. De todo modo, essa dinâmica continental de fato resultou na fundação do CODESRIA em 1973, uma instituição que iria liderar o desenvolvimento das ciências sociais na África nos bons e maus momentos e contra as crescentes tendências autoritárias dos Estados neocoloniais. Nas décadas que se seguiram, o CODESRIA seguraria as pontas contra o ajuste estrutural por sustentar uma dinâmica progressista de pesquisa e treinamento, e promovendo a formação de novos centros e redes, ao longo de muitos campos, incluindo, mais notavelmente, estudos de gênero (MAMA, 2005).
Se ainda não temos o benefício de um balanço atualizado em relação à tradição pan-Africanista de economia política, podemos tentar esboçar alguns de seus contornos pelo menos a respeito da trajetória de Sam dentro dela. Não seria exagero dizer que Sam foi um dos agentes-chave em sua sobrevivência de uma geração para outra no curso das “décadas perdidas” de ajuste neoliberal. Ele abrangeu o que Mkandawire (1995) identificou como as “segunda” e “terceira” gerações de intelectuais africanos, e fez da sua missão criar instituições e capacidades que poderiam ser entregues às gerações seguintes. Sua trajetória pessoal o levou do Zimbabwe colonial primeiro a Serra Leoa nos anos 1970, para cursar sua graduação na Universidade de Njala. Essa foi, mais significativamente, sua primeira exposição às tradições intelectuais na África libertada (MOYO, M.P., 2016), bem como à organização marcadamente diferente das relações fundiárias e laborais prevalecentes alí em comparação à África de assentamento europeu. De Serra Leoa ele visitaria seu tio alocado no Programa de Meio Ambiente das Nações Unidas (PNUD) em Dakar, onde Sam entrou em contato com luminares como Cheikh Anta Diop e Samir Amin. Ele também foi um visitante regular no Instituto para o Desenvolvimento Econômico e Planejamento (IDEP), de onde Amin, juntamente a Abdalla Bujra, Thandika Mkandawire, Zenebewerke Tadesse, Archie Mafeje, Mahmood Mamdani e outros, embarcaria na construção do CODESRIA, e onde o Fórum do Terceiro Mundo – uma pioneira rede tricontinental de intelectuais – também foi fundada. Esse foi precisamente o “batismo de fogo” que deu a Sam sua orientação epistemológica vitalícia.
Em seguida, Sam passou um curto período nos estudos de pós-graduação no Canadá na Universidade de Western Ontário, mas retornou à África Ocidental para pesquisa e ensino, dessa vez na Nigéria, nas Universidades de Calabar e Port Harcourt. Lá, conheceu o historiador trinitário-tobagense da África, David Johnson: um encontro de mentes que Sam sempre exaltou, e que, possivelmente, foi um momento chave para lançar a dimensão transatlântica de seu pan-africanismo e internacionalismo. Sam retornou ao Zimbabwe na independência de 1980 e nunca mais saiu por um período prolongado. Mais tarde, completou seu doutorado no Reino Unido na Universidade de Northumbria, mas ele permaneceu plenamente engajado na construção nacional no Zimbabwe num momento em que o resto do continente estava partindo em outra direção.
Em casa, ele foi uma figura chave no desenvolvimento do Instituto de Estudos em Desenvolvimento do Zimbabwe (ZIDS), onde se reuniu novamente com Mkandawire, secundado pelo CODESRIA. ZIDS foi pensado como um think tank autônomo depois da independência, reunindo pesquisadores jovens e veteranos para a construção de um novo Zimbabwe; Sam liderou pesquisa e promoção de políticas relacionadas especialmente a questões fundiárias e agrárias. Ele também fundou em 1986, com Yemi Katerere, a Organização de Pesquisa Ambiental do Zimbabwe (ZERO), um centro único para promoção de políticas ambientalistas na arena nacional e regional. Na década de 1990, Sam se tornou uma figura chave no desenvolvimento da Fundação da África Austral de Economia Política (SAPES Trust) liderado por Ibbo Mandaza, e seu programa de ensino no Instituto de Pesquisa para Estudos de Políticas da África Austral (SARIPS), do qual Sam foi diretor.
Num tempo em que a dinâmica intelectual em Dar es Salaam estava se arrefecendo (TANDON, ED. 1982; SHIVJI 1993), Harare forneceu um segundo fôlego para o conjunto de preocupações intelectuais em evolução no continente, e Sam estava plenamente envolvido nisso (MANDAZA, 1986). Harare atraiu para seus eventos e conferências intelectuais como Claude Ake, Samir Amin, Horace Campbell, Mahmood Mamdani, Issa Shivji, Dan Nabudere, Jacques Depelchin, Ben Magubane, Peter Ekeh e Patricia McFadden (RAFTOPOULOS, 2016). A criação da Associação Africana de Ciência Política (AAPS) adicionou impulso ao momento. Foi precisamente nesse ambiente que Sam começou a consolidar sua abordagem na questão da terra, com insights especiais sobre as trajetórias das relações fundiárias e de trabalho na África, para qual ele tomou especial inspiração de Archie Mafeje, seu reconhecido mentor (MOYO, 2018).
No entanto, na década de 1990, o ajuste estrutural aplicado no Zimbabwe começou a afetar tanto a autonomia do ZIDS quanto a vida acadêmica. Assim como muitos outros, Sam enfrentou os dilemas apresentados pelas condições deteriorantes para pesquisa e ensino em instituições estatais, e reuniu fontes de força no CODESRIA, bem como novas possibilidades em centros não-governamentais de pesquisa, ensino e ativismo, como o SARIPS e o ZERO. No entanto, esse terreno não-governamental foi, ele mesmo, instável e vulnerável à cooptação por doadores, realidade sobre a qual Sam tinha total consciência (MOYO, MAKUMBE e RAFTPOULOS, 2000). Ainda assim, ele deu um passo audacioso na virada do século para construir um novo instituto, o AIAS, dedicado às questões fundiária e agrária na África com uma perspectiva pan-africanista. Tais questões estavam sendo consideradas “mortas” por tendências intelectuais em vigor por todo lado – tanto por marxistas ocidentais quanto liberais, incluindo um pântano de neo-weberianos e pós-estruturalistas – ao mesmo tempo em que a perspectiva pan-Africanista estava sendo cooptada pelos ventos neoliberais varrendo a renascida União Africana e sua Nova Parceria para o Desenvolvimento Africano (NEPAD). O próprio CODESRIA não foi poupado pela nova onda de abordagens teóricas e métodos, impulsionadas acima de tudo por um “giro cultural” que ameaçou sufocar os ganhos epistemológicos do passado. A iniciativa de Sam para fundar o AIAS na virada do milênio foi, portanto, uma aguda reafirmação de suas convicções.
Se a tradição pan-Africanista da economia política emergiu por várias preocupações em contraposição ao marxismo de inspiração ocidental, ela evoluiu nos anos 1990 contra o giro cultural. O desafio que essa onda apresentou não resultou em recuo, mas numa renovada luta de retaguarda e vanguarda. Sam se tornou vice-presidente do CODESRIA nessa etapa e esteve plenamente engajado em defender a orientação da instituição (MAMDANI, 2015). E, como se isso não fosse suficiente, as contradições escalaram em casa também. Em fevereiro de 2000, um movimento de ocupação de terras em massa liderado por veteranos da guerra de libertação reacendeu o radicalismo do movimento de libertação para iniciar um programa radical de reforma fundiária acelerada (Fast-track Land Reform Programme). Sanções ocidentais e uma prolongada desestabilização se seguiram enquanto o marxismo de inspiração ocidental e liberais de diferentes vertentes, culturalistas inclusos, cerraram fileiras com as sanções imperialistas contra a reforma fundiária. O recém-nascido instituto de Sam teve financiamento negado e foi ativamente rechaçado pelas agências do Atlântico Norte e elementos coloniais assentados na região por conduzir honesta e rigorosa pesquisa que demonstrou, contra a guerra ideológica travada, que uma verdadeira reforma fundiária havia tomado lugar no Zimbabwe. Mas Sam novamente esteve por romper o isolamento via CODESRIA, até mesmo, eventualmente, para ser eleito seu presidente, e via várias iniciativas Sul-Sul, como a que conduziu à Rede Sul Agrário. Essas opções não resolveram a situação financeira de seu instituto, porém forneceram a Sam solidariedade intelectual e certa medida de sanidade.
A perspectiva e agenda de pesquisa que Sam representava não poderiam tão facilmente ser suprimidas, afinal. De forma mais geral, é notável que a sobrevivência da tradição pan-Africanista da economia política tenha se apoiado na sua capacidade de refletir sobre suas próprias contradições e silêncios que continuaram a torná-la vulnerável a críticas e a desafiar suas credenciais de libertação, mais notadamente em relação ao patriarcado e à questão de gênero. É aqui que o avanço culturalista-liberal também reuniu forças ao buscar desacreditar a perspectiva anti-imperialista. Sam foi um daqueles que “reconheceu a necessidade de abraçar a teoria crítica de gênero/feminista nos estudos agrários” (MBILINYI, 2016:165), e podia contar com ele para fazer avançar a agenda feminista nas redes nas quais ele estava envolvido e ocupava altos cargos. De fato, a análise de gênero havia sido uma característica recorrente de seu trabalho na questão da terra, mesmo que não apoiado por teoria robusta (MOYO, 1995a, 2008; ver também OSSOME, 2020).
Sam foi uma boa parte da “cola” que manteve tudo isso conectado, um “pilar saliente” na infraestrutura institucional das ciências sociais africanas (MKANDAWIRE, 2015, tradução nossa). Ele era consciente da tradição intelectual a qual ele pertencia e confiante em sua habilidade de levantar à altura dos desafios do século XXI. Ele tomou de seu principal mentor, Archie Mafeje, sua apreciação da particularidade das formações sociais africanas, ou seja, o sistema de organização social baseado na linhagem, o qual, de uma maneira ou de outra sobreviveu sob os modos tributários e capitalistas de produção (MAFEJE, 1991). Para Sam, como Mafeje, era impossível pensar no desenvolvimento africano sem colocar o campesinato africano no centro da questão nacional, incluindo sua particular relação com a terra por meio da posse consuetudinária. Enquanto isso, Sam permaneceu consciente da percepção de Samir Amin (1976) de que a integração da África à economia mundial coloca pressão sistêmica no controle que o campesinato africano detém sobre terra e trabalho, seja pelo atrito de trocas desiguais ou por ondas de alienação de terra. Ele também tirou de Amin a elaboração conceitual mais abrangente das três macrorregiões coloniais da África, ou seja, as economias mercantis camponesas da África do Oeste, as economias extrativistas concessionárias da África Central e as reservas de mão-de-obra no Sul do assentamento colonial europeu. Isso o habilitou desenvolver sofisticação em sua própria análise das questões de terra, de trabalho e agrária em África. Sam inspirou-se ainda em Issa Shivji (2009a), que permaneceu atento à evolução da base legal da posse consuetudinária depois da independência, insistindo que as mudanças constitucionais em curso estavam minando diretamente a posse consuetudinária e o controle do campesinato sobre a terra e o trabalho. Finalmente, a prolongada colaboração de Sam nos anos 1990 e 2000 com pesquisadoras feministas como Patricia McFadden e Rudo Gaidzanwa em Harare, e Zenebewerke Tadesse e Dzodzi Tsikata no CODESRIA, aferiu-lhe mais completa apreciação do fundamento de gênero nas relações de terra e de trabalho e sua evolução ao longo das três macrorregiões.
Tais fios eventualmente se juntaram à tese máxima de Sam, publicada pelo CODESRIA (MOYO, 2008), que sob a reestruturação neoliberal a questão da terra na África havia finalmente adentrado em nova fase, uma de difundida alienação de terras e conflitos, mesmo na África sem experiência prévia de assentamento colonial, juntamente a uma crescente questão de terra rural-urbana derivada da crise agrária e da migração rural-urbana. É importante enfatizar que ele chegou a essa conclusão antes do início da nova onda de estrangeirização de terras em larga escala, que, a partir de então, gerou uma indústria editorial liderada pelo Norte, tipicamente ignorante sobre as trajetórias de pensamento sobre a questão de terra no continente. No entanto, a colaboração de Sam nos anos 2000 com Ben Romadhane, Kojo Amanor, Dessalegn Rahmato, Bernard Founou-Tchuigoua, Abdourahmane Ndiaye, Dzodzi Tsikata, Yakham Diop e muitos outros no CODESRIA levou a análise da questão da terra – e da tradição da economia política em si – a um novo nível, integrando uma larga gama de preocupações, desde as organizações camponesas e o desenvolvimento sustentável até as relações de trabalho e gênero (MOYO e ROMADHANE, 2002; AMANOR e MOYO, 2008; FOUNOU-TCHUIGOUA e NDIAYE, 2014; MOYO, TSIKATA e DIOP, 2015).
No geral, esse corpo de trabalho sugere que as trajetórias macrorregionais na África têm estado em transição em direção a novos padrões de acumulação, decorrentes da nova apropriação de terras e recursos, da diferenciação em curso no campo e da persistente crise de reprodução social de uma reserva de mão-de-obra em expansão a nível continental. Tal diagnóstico é uma chamada de alerta para o planejamento do desenvolvimento e um que requer que a tradição de economia política continue a evoluir na construção de alternativas. O mesmo diagnóstico é não menos uma contribuição para nosso entendimento da economia mundial e de suas formações sociais periféricas – a larga maioria da população mundial – que está constantemente sendo reconfigurada ao longo do Sul. Graças a essa tradição, temos um melhor entendimento dentro da economia política da dinâmica da crise da reprodução social que afeta a classe trabalhadora da África e do Sul; a relação íntima entre terra, trabalho e gênero na produção e reprodução; a exigência de que terra, agricultura e meio-ambiente movam-se para o centro das alternativas de desenvolvimento; e, de fato, o imperativo de que a luta de libertação permaneça uma luta contra o imperialismo.
As questões fundiária, agrária e nacional do Zimbabwe
A dinâmica intelectual a nível continental entrou em sinergia com o trabalho de Sam sobre o Zimbabwe. Sam voltou para o seu país depois de 1980 para se dedicar à pesquisa e ao ativismo em relação às questões fundiária e agrária. Ele foi um escritor prolífico – e não havia, virtualmente, assunto sobre desenvolvimento que fosse desafiador o bastante para ele. Durante os dez anos seguintes, investigou as complexidades da questão fundiária sob condições de assentamento colonial (MOYO, 1987, 1995b), a produtividade dos grandes fazendeiros e dos camponeses (WEINER, MOYO, MUNSLOW e O’KEEFE, 1985), coletivos agrícolas (MOYO, SUNGA e MASUKO, 1991), o meio-ambiente regional (MOYO, SILL e O’KEEFE, 1993; MIDDLETON, O’KEEFE e MOYO, 1993), relações de gênero (MOYO, 1995a, 2000), democracia (MOYO, 1999), mudança no uso da terra sob ajuste estrutural (MOYO, 2000), trabalhadores rurais (MOYO, RUTHERFORD e AMANOR-WILKS, 2000), organizações não-governamentais (MOYO, MAKUMBE e RAFTOPOULOS, 2000) e movimentos sociais (MOYO, 2001, 2002).
O que distinguiu Sam ao decorrer de sua trajetória intelectual foi a insistência de que em uma ex-colônia de assentamento europeu, a questão fundiária permanecia no cerne tanto da questão agrária quanto nacional, e, como tal, era o ponto de partida para qualquer caminho de desenvolvimento alternativo. Isso o colocou em rota de colisão com as tendências intelectuais dos anos 1990, cujos conceitos e métodos sistematicamente minimizaram as reivindicações de terra dos pequenos produtores enquanto também negavam as aspirações populares de libertação nacional. Para os marxistas ocidentais, a questão agrária era agora redutível a uma mera questão “de trabalho” (BERNSTEIN, 2006), enquanto liberais de várias vertentes vislumbravam um futuro em “participação comunitária”, como em reformas fundiárias “conduzidas pelo mercado” ou na “administração” de recursos naturais (MOYO, 2000; ver também AMANOR, 2020). Essas tendências intelectuais serviram essencialmente para justificar a dominação pelos colonos assentados e preservar as condições neocoloniais para o benefício do capital estrangeiro e dos colonos.
Os mesmos ventos de reação procuraram deslocar a análise da situação neocolonial com uma dicotomia simplista de “autoritarismo versus democracia” conveniente a todos: neogramscianos, neoweberianos, neoliberais da teoria da escolha racional e pós-estruturalistas. A insistência de Sam de que a sociedade de assentamento colonial tinha sua base material nos monopólios econômicos criados pelo colonialismo, especialmente sobre a terra, colocá-lo-ia novamente em conflito direto. Essas abordagens divergiam amplamente ao longo de um espectro ideológico desde o individualismo à análise de discurso, porém todos eles compartilhassem desdém pela análise das estruturas econômicas do domínio neocolonial. Portanto, quando a reforma agrária eclodiu em 2000, eles cerraram fileiras, quase sem hesitação, em torno de uma agenda de “direitos humanos” em defesa do privilégio branco.
Sam tinha clareza que a supremacia branca permeava todos os aspectos da vida social e cultural, mas também que ela tinha que ser derrotada como sistema econômico. Sua crítica à raça desafiava diretamente o discurso através do qual os monopólios dos colonos operavam. Sua análise do capitalismo de assentamento colonial abordou, primeiro, o mito da “produtividade” da agricultura branca de larga-escala, o setor que dependia persistentemente da intervenção estatal colonial e de recorrente resgate em tempos de crise. Tal suporte nunca estava disponível ao campesinato; muito pelo contrário, as estratégias de acumulação vindas debaixo vieram a ser sistematicamente reprimidas. Portanto, Sam denunciava o “sucesso” do colono como um produto da expropriação colonial de terras, seguido por infindáveis subsídios estatais, proteções e investimentos em estradas e irrigação e, acima de tudo, a criação de um sistema de trabalho barato baseado na superexploração do trabalho negro (MOYO, 1987, 1995b). Ele também ressaltou que mais da metade das terras dos fazendeiros nos anos 1980 estava ociosa para fins especulativos, sem qualquer uso produtivo (WEINER et al., 1985; MOYO, 1995b). Então, na década de 90, Sam foi um dos primeiros a observar que as políticas de ajuste estrutural forneciam novas possibilidades de acumulação para os colonos (MOYO, 2000). Eles agora eram capazes de usar terras subutilizadas para parques de safari atendendo à indústria global de turismo, assim como terras aráveis para culturas “não-tradicionais” voltadas à exportação, como frutas frescas, vegetais e flores de corte. De novo, nada disso era acessível ao campesinato.
O segundo mito que Sam desafiou estava relacionado à “passividade” do campesinato em relação à terra. A tendência intelectual nos anos 1990 era a de negar a existência de reivindicações camponesas por terra, ou, de outra maneira, culturalizá-las como um espetáculo antropológico regionalizado ou historicamente descontínuo. Em resposta, Sam elaborou um arcabouço para a análise da vazante e do fluxo das ocupações de terras pelo campesinato em escala nacional depois da independência (MOYO, 2001, 2002; ver também MURISA, 2016). Estas variaram de ocupações de terra “de baixo perfil mas de alta intensidade” em 1980–83, nas fazendas abandonadas pelos colonos durante a guerra de libertação; a ocupações de “baixo perfil e baixa intensidade” em 1984–1996 em terras diversas, privadas e estatais; a ocupações de ‘alto perfil mas de baixa intensidade” em 1997–98 em fazendas coloniais listadas para aquisição pelo Estado; às ocupações de “alto perfil e alta intensidade” de 2000, que finalmente levaram a aquisição em larga escala sem compensação de 9 milhões de hectares de fazendas, em acréscimo aos 4 milhões de hectares que haviam sido adquiridas até aquele momento. Essa análise virou o jogo sobre aqueles que buscavam estigmatizar a reforma fundiária fast-track dos anos 2000 como um jogo oportunista de poder perpetrado por um partido nacionalista moribundo desprovido de conteúdo popular. Para aqueles que haviam minimizado ou relativizado a questão da terra, a reforma fundiária só poderia ser “impopular”.
Houve um elemento adicional que entrou na batalha no curso da reforma fundiária: a aspirante burguesia negra que havia sido efetivamente banida pelos monopólios coloniais. Para Sam, isso apenas demonstrava o quão difundida a demanda por terras de fato estava, para além do campesinato. Enquanto o discurso colonizador e imperialista taxava as demandas de terra da burguesia emergente como prova de “corrupção” ou de uma política “antipobre”, ele viu a emergência da burguesia negra como um importante fato político com legitimidade de si, e que, ainda, apresentava potencial econômico dentro de uma introvertida estratégia nacional de acumulação.
Para Sam, o caráter da burguesia negra não era dado a priori, e, de fato, dependia das relações de força com o campesinato. Acima de tudo, ele considerava o campesinato o único agente capaz de um caminho alternativo de desenvolvimento. Ele insistiu que o campesinato permaneceu um agente “não testado” para a transformação social apesar da falha histórica de todos os outros agentes, capitalistas estrangeiros e nacionais. Isso explica a devoção ao longo da vida de Sam à análise do campesinato, e também explica o caráter de classe de seu Pan-africanismo: ou o Pan-africanismo seria para o campesinato ou seria incapaz de atingir seu potencial. Isso se estendeu ao Sul como um todo: seria apenas possível reivindicar seu lugar de direito contra o Norte se atentasse à via camponesa. Indubitavelmente, Sam viu na revolução chinesa uma experiência histórica que havia verdadeiramente testado o campesinato durante o tempo e com inquestionável sucesso.
Tudo isso diferenciava Sam das tendências nos “estudos do campesinato” (peasant studies) que, dos anos 1990 em diante, transformou o campesinato em uma curiosidade intelectual ou objeto de pensamento agroecológico. Ele concordava que o imperialismo havia encurralado o campesinato numa função de produção de commodities; ainda assim, entre a subsunção formal e real do trabalho ao capital, permaneceu na virada do milênio todo um mundo que se recusou a ir embora e precisou ser compreendido. Sam não aderiu às tendências intelectuais que emanavam do Norte mesmo que ganhassem amplo alcance no Sul; ferramentas científicas teriam a sua prova em sua habilidade de servir à libertação nacional. E no milênio, a re-radicalização do Zimbabwe foi o teste de tornassol. O capitalismo realmente existente, para Sam, tinha um campesinato em seu meio, e a África se encontrava no centro daquilo! Não havia questão de desejar que o campesinato sumisse ou que se subordinasse um plano “superior” – tão chamado “socialista” ou “agroecológico”.
Seu engajamento intenso com a questão da terra no Zimbabwe permitiu a Sam desfazer vários outros mitos relacionados ao caráter do campesinato, que podem ser resumidos da seguinte forma. Primeiro, o campesinato está profundamente enredado na produção de commodities, mas a fazenda camponesa não é um mero negócio. Isso torna os “produtores agrícolas” (farmers) na África e no Sul substancialmente diferentes de seus supostos homônimos no Norte. O campesinato se apoia em valores de troca, mas também extensivamente nos valores de uso extraídos dos bens comuns que fornecem pasto, lenha, água e outros recursos naturais. Segundo, terras camponesas são usadas não apenas para produção, mas também extensivamente para a reprodução da casa, este sendo essencialmente o único sistema de proteção social disponível para o campesinato. Isso explica porquê o campesinato persiste, até mesmo se expande, em tempos de crise econômica generalizada, o que, de outra maneira, torna tanto do empresariado capitalista em pó. Terceiro, tanto o acesso à terra quanto a mobilização do trabalho são altamente diferenciadas dentro do domicílio, o qual é caracteriza-se por uma persistente divisão sexual do trabalho. Patriarcado e patrilinearidade, que nunca são os verdadeiros objetos de políticas públicas e fundiárias neoliberais, perpetuam a opressão da mulher e fornecem subsídio sistemático ao capital compensando os custos da reprodução social nos ombros especialmente das mulheres e crianças. Quarto, o campesinato é diferenciado entre “ricos”, “médios” e “pobres”, o que é determinado por padrões de uso do trabalho, tamanhos das terras e rendas obtidas fora da fazenda ou agricultura. O campesinato pobre, de longe a maior classe agrária na África e no Sul, sobrevive por abranger variadas atividades agrícolas e não-agrícolas ao longo da divisão rural-urbana, até mesmo fronteiras internacionais. As mulheres são geralmente as mais pobres dos pobres do que é essencialmente uma reserva de mão-de-obra global em expansão, reproduzindo-se sob condições semiproletarizadas pelo trabalho pago e não-pago, dentro e fora da agricultura, produtivo, improdutivo ou reprodutivo. Quinto, e finalmente, o campesinato pobre é onde a política de real consequência ocorre. Processos eleitorais e partidos políticos precisam do campo para votos, enquanto organizações religiosas, sindicatos, movimentos sociais e ONGs disputam os corações e mentes desse semiproletariado para diversos projetos políticos, frequentemente de caráter suspeito senão reacionário.
Enquanto outros podem ter visto em tudo isso um mundo desgracioso, Sam viu nele o único ponto de partida para o desenvolvimento e a estabilização da força de trabalho. Aqui é onde o planejamento do desenvolvimento, ele insistia, precisava focar, garantindo acesso a terra para ambos, produção e reprodução tanto nas áreas urbanas quanto rurais, e investindo na melhoria técnica da agricultura e infraestrutura rural, estradas e irrigação objetivando a acumulação “de baixo”. Sam não se iludiu com o pensamento “ecológico”, que poderia facilmente ser apropriado, ou mesmo com as tendências “agroecológicas”, que, uma vez mais, transformaram a libertação nacional em um subconjunto de outra causa. Ele observou o óbvio: que o campesinato pobre na África sempre teve um pé na agroecologia devido ao mero fato de seu baixo poder de compra ter sempre tornado insumos químicos e outros inacessíveis. O que era necessário, Sam argumentou, era uma estratégia de integração do mercado doméstico, junto a um plano nacional e regional de soberania alimentar, baseado em níveis qualitativamente superiores de consumo e reprodução social (MOYO, 2015). No caso do Zimbabwe, nada disso seria jamais possível sem a derrubada do monopólio dos colonos. De modo geral, Sam viu no campesinato toda uma gama potencial de desenvolvimento, incluindo sua capacidade de absorção de mão-de-obra, cooperativismo espontâneo, versatilidade na produção, baixa demanda de energia e zelo pelo equilíbrio ecológico. Tudo isso exigia apoio público para capacitar um campesinato emergente a funcionar em sinergia positiva com as indústrias domésticas e salários, e padrões mais altos de consumo e reprodução.
Nos anos 2000, Sam possivelmente enfrentou o mais importante desafio de sua vida, o momento da verdade sobre as questões da terra, agrária e nacional. Ele havia sido a figura central nos debates para política nacional sobre a questão da terra, então foi naturalmente propelido à frente em 1997 quando o governo do Zimbabwe (GZ) listou 1.471 fazendas por aquisição compulsória. Em junho de 1998, o GZ publicou um arcabouço de políticas para a aquisição de terras e reassentamento, e uma conferência internacional foi convocada em setembro com governos estrangeiros, doadores e agências internacionais lideradas pelo PNUD. Uma onda de ocupações de terra eclodiu tendo como alvo essas fazendas numa demonstração de força. O PNUD conduziu um estudo que contava com a competência de Sam e de sua equipe de pesquisa no SARIPS, mais notavelmente o Prosper Matondi, porém a sequência de eventos políticos fez escalar o processo de radicalização para além dos pormenores das conferências internacionais. A escalada foi marcada pela recusa do governo do Reino Unido em reconhecer “responsabilidade especial” como um poder ex-colonial pelos custos de compra da terra. Enquanto isso, os sindicatos de base urbana mas fora do partido dirigente e veteranos de guerra de base rural mas dentro do partido entraram em curso de colisão que encontrou seu destino em 2000, quando um referendo foi realizado para uma nova constituição que, entre outros assuntos polêmicos, incluiu uma cláusula sobre aquisição compulsória sem compensação. A proposta constitucional foi rejeitada, levando à eclosão de ocupações de terra em massa em fevereiro, e radicalização do movimento de libertação e do próprio aparato estatal (MOYO 2001; MOYO e YEROS, 2005a, 2007a, 2007b, 2009, 2011, 2013; MOYO e CHAMBATI, 2013).
A internacionalização e a polarização da “questão do Zimbabwe” que se seguiram trouxeram para a centralidade dilemas perenes relativos a mudanças estruturais na periferia. De fato, esse foi inquestionavelmente o caso mais importante de radicalização no pós-Guerra Fria, para além das experiências Sul-americanas. Ademais, ele também revelou muito sobre o estado das ciências sociais e os problemas de produção de conhecimento, senão também as armadilhas da política “progressista” ao redor do mundo. As ciências sociais foram pegas despreparadas, tendo sido profundamente transformadas pelo neoliberalismo e seus parceiros de viagem culturalistas. Se duas décadas antes esse momento teria sido analisado como uma revolta contra o neocolonialismo, agora ele era um mero caso de “autoritarismo”, “má administração”, “nacionalismo moribundo”, “capitalismo clientelista” e “corrupção”. Além disso, a pesquisa sobre reforma fundiária foi também proibida ou condicionada: quem quer que produzisse dados que não corroborassem com a linha anglo-americana seria taxado de “fantoche de Mugabe” e teria qualquer possibilidade de financiamento e veículos de publicação negada. Durante muitos anos, Sam e o time no AIAS caminharam sozinhos, com poucos fundos entrando, lutando para permanecer fora da quarentena internacional.
Sam manteve sua distância das contradições e intrigas do partido dirigente enquanto permanecia um firme crítico da “oposição” neoliberal. Nada disso foi estrada fácil de se seguir. Mas ele permaneceu disponível para prover expertise a qualquer um que solicitasse, de acordo com seus próprios princípios. Das organizações internacionais, à parte da PNUD, o Banco Mundial o cortejou. Ele também proveu expertise para a Comissão Presidencial de Reforma Fundiária (Comissão Utete), responsável pela verificação do resultado redistributivo, e para diálogos em nível provincial e da sociedade civil. Adicionalmente, o time na AIAS, que durante os anos incluiu um grupo estelar de jovens pesquisadores, tanto empregados ou associados – nomeadamente, Walter Chambati, Tendai Murisa, Dumisani Siziba, Charity Dangwa, Kingstone Mujeyi, Ndabenzinhle Nyoni, Wilbert Sadomba, Freedom Mazwi, Rangarirai Muchetu, Steven Mberi e Grasian Mkodzongi – nunca cessaram de produzir relatórios com o pequeno financiamento que chegava, bem como suas teses de mestrado e doutorado sobre os resultados sociais e econômicos da reforma fundiária. Esse esforço inicial de uma década inteira culminou em uma publicação de classe mundial sobre a transformação agrária depois da reforma fundiária via um levantamento de dados primários em escala nacional (national baseline survey) que foi concebido e executado pelo time do AIAS (MOYO et al., 2009). Ele recebeu apoio institucional e de pesquisa da Embaixada Real da Noruega e da Fundação Kellogg. A pesquisa demonstrou em detalhes meticulosos que a reforma fundiária serviu à justiça social e reparação histórica. O esforço de pesquisa estendeu-se para um Grupo de Trabalho Nacional apoiado pelo CODESRIA, que publicou um livro co-editado por Sam e Walter Chambati (MOYO e CHAMBATI, 2013).
Entre estudiosos situados no Norte, um dos poucos e iluminados exemplos de pesquisa sistemática desenvolvida sobre a reforma fundiária foi por Ian Scoones e sua equipe no Instituto de Estudos em Desenvolvimento (IDS), em Sussex, no Reino Unido. A publicação de seus trabalhos (SCOONES et al., 2010) marcou uma détente na comunidade científica e o início da “normalização” da pesquisa sobre a reforma fundiária do Zimbábue. O estudo do IDS foi publicado logo após o baseline survey do AIAS e corroborou os resultados do time do AIAS. Não obstante, também demonstrou que a “verdade” era ainda inalcançável na África, requerendo a validação do Norte. Além disso, a trajetória dessas publicações era marcadamente diferente: até hoje, permanece sendo uma surpresa ver referências aos estudos do AIAS mesmo que eles tenham circulado amplamente em formato digital, em contraste com as frequentes citações feitas ao estudo IDS, que foi publicado em livro no Atlântico Norte e na África Austral. De fato, o primeiro reconhecimento público real da equipe do AIAS veio de um não-especialista em assuntos Zimbabuanos, ninguém menos que Mahmood Mamdani, em seu artigo “Lições do Zimbabwe” publicado na London Review of books em dezembro de 2008, que causou enorme comoção internacional e muito possivelmente preparou o cenário para a détente subsequente (MAMDANI, 2008; MOYO e YEROS, 2009).
Muito mais poderia ser dito sobre as políticas de produção de conhecimento. As principais revistas especializadas em assuntos agrários e estudos africanos no Norte e outras consideradas “progressistas” geralmente tinham grande dificuldade em reconhecer autoridade nessa tradição Pan-africanista de economia política que Sam representava. O Journal of Agrarian Change publicou seu primeiro dossiê temático precisamente sobre a questão do Zimbabwe, mas sem incluir aqueles que foram mais sistematicamente empenhados no estudo desse tópico, nomeadamente Sam e a equipe do AIAS. Quanto ao Journal of Peasant Studies, passara uma década antes de se interessar pelo trabalho de Sam sobre o Zimbabwe, a ponto de convidá-lo a escrever sobre os resultados da reforma fast-track. (MOYO, 2011a, 2011b). A Review of African Political Economy não foi muito mais rápida, publicando um artigo em co-autoria anos depois do início da fast-track, e outro escrito por Sam no final da década (MOYO e YEROS, 2007a; MOYO, 2011c). Ainda, outra experiência foi a da Historical Materialism, que tardiamente publicou um artigo em co-autoria (MOYO e YEROS, 2007b), mas também organizou uma edição especial sobre África sem nenhum interesse na experiência do Zimbabwe ou na tradição Pan-africanista de economia política. Por sua vez, a Monthly Review permaneceu em silêncio sobre a questão do Zimbábue ao longo desse duradouro período, exceto por um artigo de intervenção em sua revista de edição digital depois do episódio de Mamdani (MOYO e YEROS, 2009). Essa dura realidade funcionou como pano de fundo para a decisão de fundar a Agrarian South: Journal of Political Economy em 2012, uma revista independente Sul-Sul de economia política, mobilizando redes tricontinentais que eram agora extensivas e profundas o suficiente para sustentar tal alternativa.
Vale a pena notar, por fim, que se a comunidade científica do Atlântico Norte não estava desejosa de uma reforma agrária nacionalista radical na África, tampouco estava a maioria dos movimentos sociais da era “antiglobalização”. Essa situação foi observada em meados dos anos 2000 (MOYO e YEROS, 2005). Com a exceção da África do Sul, cujo movimento sem-terra apoiou a fast-track, não havia suporte notável do sindicalismo internacional ou mesmo da ascendente internacional camponesa, La Via Campesina (VC). Se a postura do sindicalismo podia geralmente ser explicada pela cooptação pós-Guerra Fria dos sindicatos do Sul pelo sindicalismo social democrata/liberal do Norte, o que poderia explicar o silêncio da Via Campesina? A VC conservou um “ponto cego” ideológico derivado de seu comprometimento com a aliança Norte-Sul, bem como da esquerda “daltônica” da América Latina de assentamento colonial que agregou substância ideológica à VC. Isso explica o lugar de destaque dado à agroecologia como um princípio ideológico e programático, contra o fato histórico de que o campesinato do século XX foi o coração e alma dos movimentos de libertação. O movimento de ocupação de terras do Zimbabwe, o movimento mais importante pós-Guerra Fria, ficou subitamente fora do radar ideológico.
Construindo solidariedade tricontinental para uma agenda gobal de pesquisa
Como se a liderança de Sam na construção de capacidades institucional e de pesquisa na África e Zimbabwe não fossem suficientes para uma vida, ele também avançou numa série de iniciativas para a construção da cooperação Sul-Sul. Como vice-presidente do CODESRIA no início dos anos 2000, ele representou-o em Buenos Aires e Havana em reuniões feitas com outras organizações da África, Ásia e América Latina, nomeadamente, o Conselho Latino Americano de Ciências Sociais (CLACSO), a Associação Africana de Ciência Política (AAPS), a Organização para Pesquisa em Ciência Social na África do Leste e Austral (OSSREA), a Associação Asiática de Estudos Políticos e Internacionais (APISA) e a Rede de Estudos de Conflito do Sudeste Asiático (SEACSN). Com o apoio de Atilio Boron e Adebayo Olukoshi, os secretários executivos do CLACSO e do CODESRIA, respectivamente, Sam foi indicado juntamente à Gladys Lechini da CLACSO para rascunhar um programa compreensivo para a cooperação trilateral Sul-Sul (ver LECHINI, 2020). Isso rendeu conferências internacionais, workshops e institutos de verão, bem como publicações de livros, papers etraduções. Essa foi a convergência mais importante das comunidades cientificas continentais ao longo do Sul nos anos 2000.
Mais tarde, na mesma década, como presidente do CODESRIA, Sam supervisionou o estabelecimento do Instituto Afro-Árabe, assim como iniciativas para a construção de vínculos com as comunidades científicas da China e da Índia (ver TSIKATA, 2017). Ao decorrer dos anos 2000, Sam permaneceu ativo nos programas do Fórum do Terceiro Mundo (FTM) e do Forum Mundial para Alternativas (FMA) liderado por Samir Amin, e colaborou na iniciativa da FMA relacionada à questão agrária (HERRERA e LAU, 2015). Ele também aprofundou sua relação pessoal e institucional com intelectuais da China, especialmente com Wen Tiejun, Sit Tsui, Kin Chi Lau e suas equipes de pesquisa nas Universidades de Renmin e do Sudoeste; na Índia, na Universidade Jawaharlal Nehru (JNU), com Praveen Jha, Utsa Patnaik, Prabhat Patnaik, Jayati Ghosh, C.P. Chandrasekhar, Archana Prasad e outros membros do corpo docente do Centro para Estudos Econômicos e Planejamento (CESP) e o Centro para o Estudo do Setor Informal e do Trabalho (CISLS), como também Sandeep Chachra, na ActionAid; no Japão, com Yoichi Mine da Escola de Graduação de Estudos Globais da Universidade Doshisha; e no Brasil, com Paris Yeros, da Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) e da Universidade Federal do ABC em São Paulo (UFABC), com Marcelo Rosa da Universidade Federal Fluminense (Fluminense, UFF) e Brasília (UNB), e Francesco Pierri do Ministério de Desenvolvimento Agrário (MDA). Sam também manteve fortes relações com membros de faculdades e instituições nos Estados Unidos, especialmente com Bill Martin da Universidade do Estado de Nova Iorque em Binghamton e Beverly Silver na Universidade Johns Hopkins, em Baltimore.
Em paralelo a seu trabalho no CODESRIA, Sam começou a costurar o que viria a se tornar a Rede Sul Agrário (ASN),utilizando-se de todas as redes acima. Um aliado chave no continente foi Issa Shivji, que apoiou Sam em seus esforços de construir a rede do AIAS, tendo fundado em 1994 a Hakiardhi, uma organização de defesa dos direitos à terra na Tanzânia, em cujo comitê consultivo Sam também serviu. Eles partilhavam uma apreciação profunda pela questão da terra, a necessidade de defender a perspectiva radical Pan-africanista, e a disposição de criar alianças Sul-Sul. O primeiro marco foi o lançamento do programa da anual Escola de Verão Sul-Sul, em 2009, em Harare, que se tornaria a alma da rede. É onde as ideias de pesquisa atuais têm sido debatidas anualmente entre um grupo de jovens e veteranos pesquisadores, juntamente a ativistas de movimentos sociais. Muitos dos participantes têm retornado ano após ano para criar uma experiência coletiva de aprendizado cumulativo. A Escola de Verão apoiou-se nos parceiros Sul-Sul mencionados acima, especialmente em Praveen Jha, da Índia, e Paris Yeros, do Brasil, mas seu centro de gravidade permaneceu na África, entre associados, incluindo Issa Shivji, Ng’wanza Kamata, Marjorie Mbilinyi, e pesquisadores jovens e ativistas da Universidade de Dar es Salaam e Hakiardhi; Dzodzi Tsikata, Kojo Amanor e estudantes pós-graduandos da Universidade de Ghana; Lungisile Ntsebeza, Horman Chitonge e Fred Hendricks das Universidades de Cape Town e Rhodes, na África do Sul, mais ativistas da Fundação para Extensão Comunitária e Educação (TCOE),especialmente Mercia Andrews.
Outro marcador na construção da rede foi a trilogia de publicações tricontinentais sob o rótulo de “Recuperação” (Reclaiming), produzida a partir de iniciativas de pesquisa lançadas pelo AIAS em sua concepção, em 2002. A primeira pesquisa tricontinental buscou avaliar o crescimento dos movimentos rurais sob o neoliberalismo ao longo do Sul e situar em seu interior a experiência do Zimbabwe. O resultado foi Reclaiming the Land: The Resurgence of Rural Movements in Africa, Asia and Latin America [Recuperando a Terra: A Ressurgência de Movimentos Rurais na África, Ásia e América Latina] (MOYO e YEROS, 2005),um livro comparativo sobre movimentos sociais rurais nos três continentes, o primeiro desse tipo desde o desencadeamento do neoliberalismo. Duas conclusões do livro são dignas de nota: primeiro, que a crise agrária cade ves mais profunda e a migração rural-urbana experimentada sob o neoliberalismo não haviam colocado fim às questões fundiárias e agrárias mas, sim, agravaram-nas; segundo, que a emergência dos movimentos rurais sob o neoliberalismo foi extensa, e eles tornaram-se centros de organização do campesinato semiproletarizado e trabalhadores rescindidos das minas e das áreas urbanas.
Um segundo projeto de pesquisa tricontinental foi lançado em 2007, agora focado nos novos nacionalismos que estavam emergindo no Sul, frequentemente ligados a movimentos rurais. Novamente, a experiência do Zimbabwe exigiu trabalho comparativo mais abragente, dado que diversas experiências de radicalização estavam surgindo e enfrentavam dilemas semelhantes. Esse projeto comparativo resultou na publicação do Reclaiming the Nation: The Return of the National Question in Africa, Asia and Latin America [Recuperando a Nação: O Retorno da Questão Nacional na África, Ásia e América Latina] (MOYO e YEROS, 2011),que, novamente, alcançou algumas conclusões dignas de nota: primeiro, que sob o neoliberalismo, integração global e desintegração nacional eram dois lados da mesma moeda; segundo, que a diferenciação das trajetórias de países no Sul estava avançada, com alguns conseguindo “emergir”, até mesmo estabilizar-se temporariamente sob condições subalternas, enquanto outros sucumbiram à fragmentação ou ocupação estrangeira e, na contracorrente, um punhado de pequenos países periféricos entraram num período de radicalização. De novo, esse livro não tinha igual naquele momento.
Um terceiro projeto tricontinental foi lançado no fim da década, focando no imperialismo, na acumulação primitiva e na apropriação de terras. O livro de Issa Shivji, Accumulation in an African Periphery [Acumulação em uma Periferia Africana] (2009b),já havia dado o tom. De fato, esse conjunto de preocupações abriram campo para um número de colaborações de pesquisa e publicações cada vez mais próximas com colegas na JNU em Nova Déli. Sam publicou um livro com Utsa Patnaik em 2011 com um prefácio escrito por Issa Shivji, intitulado The Agrarian Question in the NeoLiberal Era [A Questão Agrária na Era Neoliberal] (PATNAIK e MOYO, 2011); ao longo dos próximos anos, o trabalho de Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik se tornaria uma grande referência para Sam (ver PATNAIK e PATNAIK, 2017). Adicionalmente, Sam escreveu em co-autoria com Praveen Jha e Paris Yeros vários artigos sobre a agricultura africana e temas globais, desde o imperialismo contemporâneo e a questão agrária (MOYO, YEROS e JHA, 2012; MOYO, JHA e YEROS, 2013, 2016), às reservas globais de trabalho (JHA, MOYO e YEROS, 2017) e ao campesinato na África (MOYO, YEROS e JHA, 2018). Dois deles apareceram em livros dedicados à vida e trabalho de Utsa Patnaik e Prabhat Patnaik. Sam foi arrebatado de nós em 2015 durante uma conferência na JNU, justo quando essa reforçada relação tricontinental estava ganhando vigor.[2]
O livro final da trilogia foi publicado postumamente e com grande atraso em 2019, intitulado Reclaiming Africa: Scramble and Resistance in the 21st Century [Recuperando a África: Corrida e Resistência no Século XXI] (MOYO, JHA e YEROS, 2019). Ele foi o resultado bem provavelmente do maior esforço sustentado e colaborativo no Sul para avaliar a nova corrida por terras na África. Diferente de outras iniciativas, essa buscou evitar as armadilhas de abordagens teóricas problemáticas sobre imperialismo e acumulação primitiva e de teorias liberal-institucionalistas de “regimes alimentares” emanando do Norte, que já haviam recebido atenção crítica (MOYO e YEROS, 2005; MOYO, YEROS e JHA, 2012; YEROS, 2012). O foco empírico mais detalhado do livro foi dava sobre os novos players “emergentes” dentre os países semiperiféricos do Sul e sobre várias experiências nacionais na África.
Toda essa experiência de Escolas de Verão anuais e colaboração tricontinental gerou uma rede substancial e crescente, novamente, a única do tipo no mundo. Talvez ainda mais importante, muitos(as) jovens estudiosos(as) que participaram regularmente da Escola de Verão concluíram seus estudos de pós-graduação e passaram a publicar pesquisas importantes, que, sem dúvida, representam marcas registradas da Escola de Verão. Conforme for, podemos por certo falar de uma “escola de pensamento” sendo cultivada. Além da equipe interna do AIAS, mencionada anteriormente, outros, há muito associados à Escola de Verão, completaram suas teses de doutorado durante esses anos para se tornarem exemplos de excelência, incluindo nada menos do que Lyn Ossome, Ricado Jacobs, Rama Salla Dieng, Manish Kumar e Santosh Kumar.
Finalmente, a fundação da revista Agrarian South em 2012, foi outro marco. Publicada em Nova Déli pelo Centro para Pesquisa Agrária e Educação para o Sul (CARES), administrado por Sandeep Chachra, e Sage Publications India, Sam foi seu editor-chefe fundador. A revista entrou em sinergia com a Escola de Verão para fornecer um espaço de publicação para jovens e veteranos(as) envolvidos nas deliberações da rede, mas também para estudiosos e estudiosas pelo mundo, especialmente aqueles e aquelas situados(as) em regiões do Sul. A revista adotou um formato tricontinental para seu time editorial, e deu voz a preocupações de pesquisa que ou não aparecem nas revistas do Norte ou estão sujeitas a abordagens que estão distantes das tradições intelectuais do Sul. Sua declaração editorial inaugural expressou a diferença em tom e substância:
A questão agrária continua a evoluir. Ela certamente permanece uma questão da soberania nacional, sob condições de uma nova disputa. Ainda diz respeito à junção do martelo e da foice; mas ambos agora sofreram mutação. A questão da terra em si adquiriu novos significados. E é, mais empaticamente do que nunca antes, uma questão de equidade de gênero e sustentabilidade ecológica. (EDITORIAL, 2012: 9, tradução nossa)
Meio século após a descolonização política generalizada, ainda é difícil encontrar uma revista tricontinental desse tipo. Ela é, possivelmente, a única na atualidade em circulação com essas características, ou seja, uma revista da pesquisa científica com um formato editorial tricontinental, comprometida em construir solidariedade tricontinental e avançar nas tradições intelectuais do Sul.
Princípios de soberania epistêmica
Seríamos negligentes se desistíssemos de tirar maiores conclusões epistemológicas da trajetória de Sam, e das experiências que compartilhamos como amigos, colegas e companheiros. À título de conclusão, indicamos brevemente um conjunto de princípios que emergem do nosso modo de produção de conhecimento.
Há algum tempo, Paulin Hountondji (1990:9) ressaltou que “em nossos países, a atividade científica permanece basicamente extrovertida, alienada e dependente de uma divisão internacional do trabalho que tende a tornar a invenção científica um monopólio do Norte, enquanto confinando os países do Sul à importação e aplicação dessas invenções”. Ele foi além, indicando “treze indícios de dependência científica”, todos os quais foram bem pertinentes a nossa própria luta por soberania epistêmica. A maioria deles foi tratada acima, de uma forma ou de outra, e, para a maior parte, o trabalho que Sam realizou ao longo da vida certamente recebe alta pontuação! Mais recentemente, algumas reflexões adicionais têm sido oferecidas por Mahmood Mamdani, Issa Shivji e Sabelo Ndlovu-Gastheni.
Mamdani tem traçado a evolução da produção de conhecimento na África – o principal local de formação intelectual de Sam – e fez uma distinção entre o “intelectual público” do CODESRIA e o “estudioso sábio” (scholar) com o qual o CODESRIA, na visão de Mamdani, tem tido problemas para se reconciliar. Segundo o autor, ambos são considerados “persona diferente”: o primeiro trabalhando “mais próximo ao chão” e o segundo com “aspirações universalistas” (MAMDANI, 2016: 79). O último é distinto, ele sugere, por endereçar “a questão epistemológica da descolonização”, o que é “focada nas categorias com as quais fazemos, desfazemos e refazemos, portanto apreendemos, o mundo. Está intimamente conectada às nossas noções do que é humano, o que é particular e o que é universal” (ibid.: 79, tradução nossa). Esse debate, Mamdani lamenta, não encontrou espaço no CODESRIA do intelectual público, o tipo que “jurou lealdade” à economia política. E, apesar dele admitir que não há distinção rígida e fácil entre as duas personas, e que, de qualquer forma, a onda neoliberal transformou o intelectual público em mais “uma engrenagem na corrente”, ele sugere que o “intelectual público” do passado foi incapaz de mergulhar em questões epistemológicas acadêmicas, entendidas como aquelas a respeito do “discurso e representação”.
Esse fio de pensamento exigiria um explorar lento, mas basta notar aqui que tal distinção tem sido questionada por Shivji (2018). Enquanto Shivji concorda que o “intelectual público” de hoje é um intelectual orgânico ao neoliberalismo – a governos, burocracias das universidades, mídia corporativa e mídias sociais – ele sugere que intelectuais que formaram a base do que foi descrito aqui como tradição Pan-Africanista de economia política, incluindo aqueles e aquelas associados(as) com o CODESRIA, não foram polarizados(as) pela distinção acima. A questão fundamental foi como se engajar em lutas ideológicas em defesa dos interesses das classes oprimidas e exploradas. Isso trouxe muitos(as) para “mais próximo ao chão”, mas de forma alguma foi contrário ao “foco nas categorias com as quais fazemos, desfazemos e refazemos, portanto apreendemos o mundo”. Podemos acrescentar que a questão colocada por Shivji tem exigido pleno engajamento com assuntos de discurso e representação, que, afinal, sempre foram inerentes à “crítica da economia política”, nos termos de Marx, apesar das conhecidas limitações do cânone europeu e economicista.
Sam, por exemplo, nunca voltou as costas para as questões de discurso e representação. Ele se engajou com elas em seus próprios termos, não aqueles impostos pelo Ocidente ou pelo giro cultural. O trabalho de Sam sobre o colonialismo de assentamento no Zimbabwe foi inteiramente voltado para desbancar as mitologias da supremacia branca. A real questão era o método. Ele estava certo que a crítica do discurso e representação não poderia simplesmente ser destacada das condições materiais e aspirações do povo trabalhador da África; fazer desse modo significaria mover para uma plataforma liberal, que, novamente, era o terreno preferido do imperialismo (ver Amanor, 2020). Ao mesmo tempo, Sam não tinha dúvidas que ele e aqueles(as) dos(as) quais ele buscou inspiração eram propriamente “estudiosos sábios(as)” no senso de Mamdani, ou seja, comprometidos(as) em desmascarar as pretensões universalistas do Ocidente e em buscar definir o que era particular sobre a África, até mesmo para o Sul (ver SCOONES, 2016; MARTIN, 2016). Ele também permaneceu orgânico às causas populares; de fato, não havia exponente mais sofisticado sobre a causa da ocupação de terras no Zimbabwe do que o próprio Sam.
Ndlovu-Gatsheni acrescentou a essas reflexões uma extensiva afirmação sobre a “liberdade epistêmica” na África, o que ele define como o seguinte:
Liberdade epistêmica é diferente de liberdade acadêmica. Liberdade acadêmica diz respeito à autonomia institucional das universidades e direitos de expressar diversas ideias, incluindo aquelas críticas às autoridades e líderes políticos. Liberdade epistêmica é muito mais ampla e profunda. Diz respeito à justiça cognitiva; ela chama-nos atenção para o conteúdo do que se é livre para expressar e em quais termos… é sobre democratizar “conhecimento” da versão atual no singular para sua conhecida versão no plural, “conhecimentos”. (NDLOVU-GASTCHENI, 2018: 4, tradução nossa).
Há dois problemas com essa conceitualização. Primeiro, liberdade epistêmica assim definida não endereça as condições materiais da produção de conhecimento, que exerce influência sistemática sobre o que “somos livres para expressar e em quais termos”. Essas são precisamente as condições materiais mais enfaticamente negadas pela reestruturação neoliberal. A questão da justiça cognitiva, portanto, precisa ser fundada numa luta para o estabelecimento de autônoma e viável infraestrutura científica. Essa, afinal, foi a missão de vida de Sam. O desafio permanece o do controle da produção de conhecimento, o que, por sua vez, é uma questão não de liberdade epistêmica como tal mas de soberania epistêmica.
Segundo, além das condições materiais para justiça cognitiva, há também seu conteúdo. Pois, é bastante normal que o conteúdo seja deficiente mesmo quando as condições materiais são favoráveis. Essa, afinal, é a situação nos centros da produção de conhecimento no Norte, e, em menor medida, nos países semiperiféricos e de assentamento colonial no Sul. Justiça cognitiva ainda se requer estar “mais próxima ao chão”, orgânico às batalhas de libertação e respeitoso em relação às tradições intelectuais que as batalhas desovaram. Pois é comum que as lutas de libertação sejam idealizadas e apropriadas por novas tendências teóricas que emanam das academias do Norte, apenas para serem realimentadas no Sul, mas fácilmente por meio dos Estados de assentamento colonial. O ponto de partida (ou “lugar de fala”) não pode deixar de ser o corpo de pensamento produzido ao longo do tempo pelas lutas de libertação. Como tal, nem românticas “epistemologias do Sul” (DOS SANTOS, 2014), nem redescobertas “decoloniais” culturalizadas do mundo moderno (MIGNOLO, 2007; GROSFOGUEL, 2007) são suficientes para a tarefa.
A diferença entre liberdade e soberania epistêmica não está no detalhe. O que emerge da visão e da luta construídas ao longa da vida de Sam são alguns princípios concretos. Num nível material mais básico, o exercício da soberania sobre a produção de conhecimento requer capacidade autônoma para ensinar, pesquisar e publicar; ou seja, infraestrutura científica autônoma. Isso implica a defesa de centros do ensino superior públicos e adequadamente financiados no Sul, assim como a quebra de monopólios na indústria da publicação que restringe o fluxo de ideias do Sul ao Norte.
Num nível ideológico, há o requerimento de exercício de soberania sobre as trajetórias intelectuais do Sul, especialmente do Pan-africanismo e de Bandung. Soberania neste sentido é fundamental para o avanço e renovação dessas tradições no século XXI, e para proteção contra o que Jacques Depelchin (2004) denominou de as síndromes da “descoberta” e da “abolição”. Esse tipo de soberania tem alguns requerimentos adicionais. Um é o reconhecimento da autoria coletiva ou reconhecimento dos(as) precursores(as) intelectuais, que é em si um ato de defesa da autoria contra a apropriação. Há também o requerimento de estar ancorado na análise das condições materiais do mundo moderno. Se nosso dever como intelectuais é “interpretar o mundo para mudá-lo”, não há escape do materialismo histórico. Isso precisa ser mantido vivo, sendo colocado a serviço da luta anti-imperialista e de libertação.
Finalmente, há a exigência de construir solidariedades ao longo do Sul para reforçar a capacidade de contestar coletivamente o eurocentrismo das ciências sociais e para aprimorar as habilidades para a análise de todas as regiões do Sul, comparativamente e colaborativamente. Se obter universalidade permanece sendo o dever histórico fundamental, e se isso requer averiguar particularidades, ambos são fundamentalmente exercícios comparativos e colaborativos. Está, do mesmo modo, na base de efetiva solidariedade Sul-Sul que pontes fortes possam ser construídas com a academia no Norte. Um feito raro de Sam foi estabelecer as condições para uma solidariedade tricontinental cujo centro de gravidade permanecesse na África.
Seu feito ainda maior foi colocar tudo isso em movimento sem fazer inimigos pessoais. Pode-se lembrar o elogio de Engels a Marx ao lado do túmulo: “Eu ouso dizer que, embora ele possa ter tido muitos oponentes, dificilmente ele tinha um inimigo pessoal”.[3] Isso certamente se aplica ao irmão Sam. Que ele descanse em paz.
Referências
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[1] Veja contribuições no comemorativo CODESRIA Newsletter, 28 de novembro de 2015, https://www.codesria.org/spip.php?article2489&lang=en; os artigos na edição especial da revista Agrarian South: Journal of Political Economy, ‘Remembering Sam Moyo: Intellectual Formation and Contributions’ [Lembrando Sam Moyo: Formação Intelectual e Contribuições] (2016, vol. 5 (2–3), alguns dos quais foram republicados no livro Rethinking the Social Sciences with Sam Moyo; e Tsikata (2017), também republicado no mesmo.
[2] Faleceu em 22 de novembro de 2015 em Nova Déli, aos 61 anos, em decorrência de ferimentos sofridos em acidente de trânsito.
[3] Frederick Engels no túmulo de Karl Marx, Cemitério Highgate, Londres, 17 de março de 1883, https://www.marxists.org/archive/marx/works/1883/death/burial.htm, acesso 4 de novembro de 2019, tradução nossa.
[1] O presente artigo foi previamente publicado em inglês sob o título “The Quest for Epistemic Sovereignty in the South: A Tribute to Sam Moyo, em Rethinking the Social Sciences with Sam Moyo [Repensando as Ciências Sociais com Sam Moyo], livro organizado por Praveen Jha, Paris Yeros e Walter Chambati (Nova Déli: Tulika Books, 2020, pp. 1–26). Agradecemos a Dzodzi Tsikata e Issa Shivji por seus comentários na elaboração desta homenagem.
[2] Praveen Jha é professor no Centro para Estudos Econômicos e Planejamento e no Centro para o Estudo do Setor Informal e do Trabalho na Universidade Jawaharlal Nehru, Nova Déli, Índia. Paris Yeros é professor nos cursos de Ciências Econômicas, Ciências e Humanidades e Economia Política Mundial na Universidade Federal do ABC, São Bernardo do Campo. Walter Chambati é Diretor Executivo do Instituto Africano Sam Moyo para Estudos Agrários, Harare, Zimbábue.
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Agrarian South Research Bulletin: October Issue
FOOD SECURITY & FOOD SOVEREIGNITY IN THE FACE OF THE GLOBAL PANDEMIC.
EDITORIAL
The ability or failure of governments
to guarantee for their populations access to
sufficient quantities of nutritious food recasts
food security as a political problem and not
merely an economic one. Across much of the
global south, enduring legacies of colonial
primitive accumulation, that forcefully and in
some cases permanently commoditized the
peasantry’s access to land and to nature,
means that for millions access to food is
necessarily mediated by the State and
privately through claims on private lands and
the commons. Click below link for more …
http://www.agrariansouth.org/wp-content/uploads/2020/10/ASN_RB_October2020_Final-1.pdf
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Covid-19, social distancing, and the world to come: Agrarian reform as part of a solution
By Thiago Lima
The New York Times warning that the main tragedy of coronavirus in Brazil could occur in its slums became widely known, since it is practically impossible to enforce social isolation and hygiene measures as recommended by the World Health Organization in these areas. In order to deal with this specific crisis, which is steeped in a structural condition, we will argue that Agrarian Reform should be part of the solution, as it would be able to create a healthy social distancing.
Currently, 13.6 million people live in slums in Brazil. The images are well known: small, poorly built, cramped houses, narrow alleys and lack of basic public services such as drinking water, sewerage services, security, not to mention the struggle to maintain food and nutritional security. Under these conditions, the possibility of a selective isolation of populations at risk can only be considered by those who are malicious or ignore the Brazilian household structure.
In these places, the practice of parental abandonment is very common and in nearly half of households women are the main providers and grandmothers are responsible for raising their grandchildren and doing other domestic chores. It is important to highlight that the existing child care services do not meet the mothers needs thereby affecting their ability to work and thus rendering support from other family members essential. These family members often share the same household. With regards to children, if it is difficult to confine them indoors under normal circumstances, it is practically impossible to restrict them in tiny houses, sharing few rooms and with no comfort all day.
This scenario is not specific to Brazil. According to the United Nations Program for Human settlements (UN-Habitat), “half of the world population lives in urban areas, with a third of these living in slums and informal settlements. The number of people living in slums increased from 760 million in 2000 to 863 million in 2012. Estimates suggest that more than 70% of the world population will be living in cities by the year 2050.” The high concentration of people living in slums in large cities is a global phenomenon, as explained by Mike Davis (2006) in “Planet of Slums” (Planeta Favela). It is a situation imposed over the last few centuries mainly as a result of a colonial and imperialist history. Why? (1) Because the territory was shaped to fulfill an economic function based on latifúndios (large land holdings, plantations etc) forcing the expulsion of people from the countryside to the cities and (2) because the notion of citizenship did not develop in these societies. That is, there are” people who are not people” in the full sense. These people are regarded as semi-persons whose tragedy is accepted to be a natural part of the landscape.
These two points are fundamental: “favelização (growth of the slums) and citizenship. The intense urbanization accompanied by the growth of the slums seems to be a characteristic of many developing countries being advanced by capitalism. Persistent dynamics, as Virgínia Fontes (2010) critically argues, in which capitalist activities in rural areas promote the emigration of the labour force to the cities by making life impossible in the countryside.
These processes of expulsion and agglomeration of people in disgraceful living conditions occur, to a large extent, because the notion of citizenship has not developed or taken root in many of these countries’ societies. That is, the idea that every person has rights to be guaranteed by collective structures, rights conferred by the fact of being recognized as part of the nation, is not present. In Brazil, Jessé Souza (2017) is one of those who considers slavery to be a dominant feature of our society. But how can we talk about citizenship development if what we have observed is a withdrawal of rights and “undoing citizenship”? We witness labour conditions equivalent to slavery and the gradual decrease of work and retirement rights. It is sure that the public education and health systems have many management flaws but nothing to compares to the precarious political direction and financing policies fall far short of what is needed. Income concentration allows that only 6 people have the same income as 100 millions Brazilians; while half of the country population does not have access to a sewer network. Finally, it is under these conditions that we must understand the superhuman effort that families living in slums need to make to protect themselves from COVID-19.
We must agree to say that “the world is small” is a statement that does not fit Brazil. It is a country with 8.5 million square kilometers and very unequal land distribution. For instance, 2% of rural establishments occupy 55% of the rural area. On the other extreme, 50% of rural establishments occupy 2% of the rural area. Deconcentration is necessary! We do not ignore the political difficulties around the issue. However, a solution needs to be found. For example, a study carried out by OXFAM concluded that the land owned by the biggest debtors in the country could assist all 120 thousand landless families that were living in camping sites in 2015, demanding an agrarian reform in Brazil.
The difficulties of putting social isolation into practice in the context of the COVID-19 pandemic demonstrate that deconcentration should be made not only for those families who already recognize themselves as landless but also be proposed for families living in slums and for homeless people. Life in the countryside can offer a kind of tranquility that does not exist in urban agglomerations and working with agricultural production can offer a new start for those who cannot find the means to live with dignity in the cities.
We know that the pandemic will hurt the most fragile national economies to death and that the resumption of investment will require the engagement of the State. In this sense, a national agrarian reform program with land redistribution is an excellent opportunity to organize and streamline the resumption of economic activity, based on a long-term infrastructure investment project that would create the conditions for the emergence of small cities with decent housing in every possible way.
Furthermore, the global magnitude of COVID-19 brought up, in all its strength, the opportunity to reflect on our agri-food standards. Rob Wallace (2016) has been warning for some time: “big farms make big flu”; therefore, the existent agri-food pattern based on grain-meat complexes with animals in overcrowded environments and dependent on international trade is one of the main causes of respiratory epidemics that have emerged since the 1990s. Thus, the deconcentration of people and redistributing them, say, over the large seas of soybeans monoculture, for instance, could lead to new agri-food standards, also more deconcentrated, more ecological, that would favour sustainable production and consumption. Deglobalization is also essential (Patnaik, 2018)!
According to Machiavelli, no one defends a territory better than a settler. This post-COVID-19 settler could be the one intrinsically interested in the development – in the broad sense of social justice – of the territory. After all, the poor people are the ones who need a clean and balanced environment, where they would produce and supply a considerable part of the local markets. This is not only a Brazilian issue. It concerns the world’s peripheries.
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Originally published at Boletim Cientistas Sociais e o Coronavírus
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Neocolonialismo Tardio: Capitalismo Monopolista em Permanente Crise
Paris Yeros & Praveen Jha
Tradução por Kenia Cardoso
Resumo: Este artigo celebra a obra de Samir Amin por avançar a análise sobre a longa crise do capitalismo monopolista. A análise apresentada confronta teorias reducionistas e a-históricas da crise para compreender a natureza do presente como crise sistêmica terminal, crise essa que tem evoluído durante a longa transição da última fase do período colonial, em meados do século XX, para a era do domínio neocolonial. Kwame Nkrumah já havia anunciado a natureza destrutiva dessa transição para o Norte e para o Sul, e, de modo astuto, visualizara nesse processo “o último estágio do imperialismo”. O neocolonialismo tardio representa o impasse dessa transição. Seus elementos incluem, por um lado, o colapso do movimento de Bandung e do sistema soviético e, por outro, a crise permanente do capitalismo monopolista. A ofensiva neoliberal sobre os povos do Sul, em particular, não trouxe solução para a crise de lucratividade. A concentração de capital atualmente persiste juntamente à escalada da acumulação primitiva e da guerra, enquanto a soberania nacional continua a se desgastar nas periferias, onde uma série de países sucumbe a uma nova situação semicolonial e outros caem na armadilha do fascismo. A crise do capitalismo monopolista só será superada quando solidariedade genuína se arraigar entre Norte e Sul e a transição socialista se consolidar – assim como defendeu Amin tão enfaticamente.
Agradecimentos: Originalmente publicado com o título ‘Late Neocolonialism: Monopoly Capitalism in Permanent Crisis’, na revista Agrarian South: Journal of Political Economy, Vol. 9, No. 1, 2020, no dossiê “Homenagem a Samir Amin: O Retorno do Fascismo e o Desafio da Desconexão [Tribute do Samir Amin: The Return of Fascism and the Challenge of Delinking]. Uma versão prévia foi apresentada por Paris Yeros na Palestra Memorial de R.N. Godbole na Universidade Jawharlal Nehru, Nova Delhi, em 26 de fevereiro de 2020. Agradecemos aos participantes por suas contribuições.
Sobre os autores: Paris Yeros é professor adjunto e membro do corpo docente do Bacharelado em Ciências Econômicas e dos Programas de Pós-Graduação em Economia Política Mundial e de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Federal do ABC (UFABC), em São Bernardo do Campo. Praveen Jha é professor de economia no Centro para Estudos Econômicos e Planejamento e no Centro para o Setor Informal e Estudos Laboriais da Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Déli, Índia.
Introdução
Samir Amin foi um gigante de nossos tempos, um estudioso de raro intelecto e coragem que deixou uma marca indelével nas ciências sociais. Tem em seu nome nada menos do que a revisão de aspectos-chave do materialismo histórico e a contribuição de toda uma vida à construção de solidariedades Pan-africanistas, Sul-Sul e globais. Amin incorporou a essência da emergência intelectual do Sul na maré dos movimentos de libertação que atravessaram o Terceiro Mundo para pôr fim a quinhentos anos de dominação colonial europeia. Ele proveu contribuições singulares ao novo projeto civilizacional forjado em Bandung, na Conferência Afro-Asiática de 1955, fazendo sua missão o avanço e a renovação da crítica marxista da economia política para iluminar o significado histórico do presente. Amin tornou-se fonte de inspiração a gerações de estudantes e ativistas, por meio das quais ele segue vivo. Sua contribuição continuará a iluminar nossa batalha porvir.
No que segue, fundamentamo-nos nos escritos finais de Amin sobre democracia e fascismo (AMIN, 2011, 2014) e em outros dedicados à economia mundial para avançar a nossa análise sobre a longa crise do capitalismo monopolista. A transição histórica que levou o colonialismo a o fim é o palco em que esse duradouro ato se desenvolve. A transição abriu caminho para um novo regime de soberania, cheio de promessas para os povos do Sul. Não obstante, as limitações e contradições dessa transição estiveram explícitas desde o início. Kwame Nkrumah (1965), como é sabido, denunciou esse estágio como uma situação neocolonial, ainda mais perigosa para o Norte e para o Sul, prevendo seu curso como “o último estágio do imperialismo”. Hoje, as soberanias nacionais continuam a se degradar sob uma prolongada ordem neoliberal, sob a escalada da violência imperialista e a ascensão do fascismo. Podemos falar de uma fase tardia do neocolonialismo, e afirmar, com Nkrumah, que dela o capitalismo monopolista não sairá para ter outra vida; ele permanecerá em constante crise até que uma transição socialista tome lugar. O capitalismo, como Amin (2003) observou, é um sistema obsoleto.
A crise permanente do capitalismo monopolista
Se tomarmos ipsis litteris a lei de Marx sobre a queda tendencial da taxa de lucro,poderíamos facilmente chegar à conclusão de que a presente crise do capitalismo é essencialmente semelhante a qualquer outra. De fato, grande parte da literatura cai nessa armadilha, focando apenas na trajetória da taxa de lucro e atribuindo seu declínio durante tantas décadas essencialmente à crescente composição orgânica do capital (SHAIKH, 2010; CARCHEDI & ROBERTS, 2013; KALOGERAKOS, 2013; ROBERTS, 2016). A essa linha de argumentação agrega-se uma crítica à “hipótese da financeirização” (MAVROUDEAS, 2018), vista como uma mistificação das contradições reais do capitalismo situadas na esfera produtiva.
O que as estimativas dos autores acima nos dizem sobre a taxa de lucro? De forma geral, tem havido um declínio de longo prazo na taxa de lucro nos setores produtivos do principal país capitalista. Esse declínio se iniciou efetivamente em 1965 e persistiu durante toda a década de 1970. Ocorreu, então, uma recuperação parcial de 1982 a 1997, a aproximadamente 2/3 do nível de 1965. Essa foi seguida de outra queda após 1997, e novamente outra recuperação em 2000, de volta aos níveis de 1997. Porém, esta foi seguida por uma queda acentuada ao longo da crise que estourou em 2008, a qual reduziu a taxa de lucro para aproximadamente 1/3 do nível de 1965. Dalí então, nova fraca recuperação sucedeu. Essa trajetória, de fato, revela uma longa crise – e nesse ponto concordamos. Tem sido uma longa crise sistêmica marcada por quebras, recessões, até mesmo depressões em alguns países, particularmente nas periferias e semiperiferias, inclusive dentro da Europa. De fato, não é mais estranho encontrar condições comparáveis àquelas encontradas entre os países avançados depois de 1929, com perdas dramáticas de mais de 30% no PIB e níveis de desemprego ultrapassando os 20%.
No entanto, essa não é uma crise essencialmente igual a qualquer outra, tampouco sua contradição principal é reduzível àquela entre capital e trabalho. Alguma perspectiva histórica e analítica sobre a longa transição permanece necessária, para uma explicação mais robusta sobre o que está em jogo. Estamos testemunhando não apenas uma repetição da crise capitalista, mas o dramático desfecho de um sistema social de quinhentos anos. Não podemos concordar com a afirmação de Roberts (2016:6) de que “não há queda permanente no capitalismo que não possa eventualmente ser superada pelo próprio capital”. Isso apenas pode se tornar mais claro se iluminarmos os mecanismos de crise sistêmica e construir em cima da formulação original da lei de Marx. Pois o foco exclusivo nas mudanças tecnológicas e a atribuição das crises de forma isolada à composição orgânica do capital obscurece a operação do imperialismo e seus modos de domínio, e acaba reduzindo o próprio imperialismo a um mero anexo – se é levado em consideração de alguma maneira. Mesmo na época de Karl Marx, a conexão entre tecnologia e lucros estava empoleirada numa relação colonial de acumulação primitiva; essa dinâmica foi observada, descrita e denunciada, mas nunca propriamente teorizada por Marx (WILLIAMS, 2012[1944]; RODNEY, 1975; AMIN, 1973; PATNAIK & PATNAIK, 2016; U. PATNAIK, 2020). Seríamos negligentes se persistíssemos nessa falha.
O contexto de Marx precedeu transformações significativas, incluindo a emergência do capitalismo monopolista e da classe trabalhadora organizada, e a ascensão e queda de uma nova partilha imperialista das periferias. Pode-se desejar concluir que, nessas condições anteriores de “livre concorrência”, havia uma relação mais imediata entre tecnologia e lucros, mas, ainda assim, o argumento continuaria fora de foco, dado o escoamento de riquezas que o colonialismo promoveu (PATNAIK & PATNAIK, 2016). Além do mais, o surgimento dos monopólios tem reposicionado a dinâmica da tecnologia, ao deslocar o foco principal da concorrência desde os preços de venda para os custos de produção. Nesse deslocamento, a própria tecnologia ganhou um novo papel na acumulação (BARAN & SWEEZY, 1996), assim como a produção e o consumo nas periferias, que continuaram a evoluir sob o peso dos monopólios (PATNAIK & PATNAIK, 2016). O colonialismo e o capitalismo monopolista continuam sendo, como diz o provérbio, “os elefantes no meio da sala”, cujo reconhecimento é essencial para entender a crise permanente do sistema capitalista e a natureza de suas contradições.
A crise maturou-se nas condições inéditas de rivalidade sistêmica depois da Segunda Guerra Mundial, quando o capitalismo monopolista confrontou tanto o planejamento soviético, quanto o Terceiro Mundo emergente (MOYO & YEROS, 2011). A base colonial dos lucros monopolistas estava colapsando, enquanto o bloco soviético se enraizava (AMIN, 2003). Do mesmo modo, a competição monopolista estava se intensificando entre a Tríade (Estados Unidos, Europa e Japão), assim como o trabalho organizado estava entrando em um novo período de agitação (para alguns dos contornos dessas contradições, veja BRENNER, 1998, 2003; ARRIGHI, 1996, 2008). As placas tectônicas estavam se movendo. Para tornar as coisas piores à competição monopolista, havia controles sobre os movimentos do capital e os mercados financeiros. Se, sob níveis existentes de produtividade e lucro, era impossível absorver a produção doméstica e ao mesmo tempo reduzir o Estado de Bem-Estar Social, também era impossível escalar a acumulação primitiva no exterior ou jogar o excedente sobre populações camponesas. De fato, boa parte do Terceiro Mundo estava exercendo controle sobre seus recursos naturais e agrícolas neste momento, em busca de maiores níveis de produção e reprodução via políticas de substituição de importações. Quer se queira ver essa conjuntura como uma nova crise de superprodução ou uma tendência histórica de subconsumo, do ponto de vista do capital foi uma crise de rentabilidade sem histórico equivalente em suas contradições.
De fato, a primeira resposta não foi embarcar numa destruição massiva de valores de ativos ou, sequer, expandir massivamente o crédito para estimular o consumo, mas, sim, uma escalada da agressão imperialista contra o Terceiro Mundo. Os gastos de guerra aumentaram para conter as periferias emergentes, o Vietnam em particular. A consequência natural foi um excesso de dólares na economia mundial e uma espiral inflacionária que desestabilizou o sistema monetário por inteiro. Conforme os monopólios continuaram a pressionar por aberturas de mercado, golpes foram aplicados pelo Presidente De Gaulle, que demandou ouro pelas aplicações da França em dólar, e pelos exportadores de petróleo do Terceiro Mundo que elevaram os preços do dia para a noite. Juntos, eles foram exitosos em desestabilizar os acordos vigentes do sistema monetário-financeiro. As medidas adotadas daí em diante para recuperar os lucros, com algum sucesso entre 1982–1997, também revelam muito mais sobre os mecanismos do capitalismo monopolista do que as suposições da “livre concorrência” invocadas. Em resposta à estagflação dos anos 1970, um esforço hercúleo foi realizado em todas as frentes, num épico exercício encapsulado no termo “globalização neoliberal”. É válido retomarmos brevemente seus elementos-chave.
Primeiro, os acordos de Bretton Woods sobre controle de capital e relações monetárias foram desmantelados, com a exceção de que o dólar americano manteve sua posição como moeda referencial em uma nova relação com o ouro. O desmantelamento dos acordos sempre foi uma exigência dos monopólios em sua busca por maior espaço de manobra, assim como o Estado norte-americano, conforme a situação evoluiu. O fim de Bretton Woods, portanto, serviu a três objetivos imediatos. Ele libertou as corporações americanas para a expansão externa ao estimular suas fontes e volumes de financiamento nos mercados de capitais nascentes. Do mesmo modo, emancipou o dólar americano de suas obrigações anteriores com outras moedas, transformando-o em mero título de dívida dos EUA, impossível de resgatar, mas ainda extraordinário em sua capacidade de impor disciplina sobre as demais moedas e absorver as poupanças do mundo. Com o devido respeito a Patnaik e Pantaik (2016: 130–137), podemos, sim, falar de uma retomada do escoamento colonial de riquezas, ora em termos neocoloniais, se considerarmos os volumes em que as reservas mundiais e o excedente de capital e dívidas são canalizados pelos títulos do Tesouro norte-americano ou pelas instituições de Wall Street para cobrir os déficits comercial e orçamentário dos EUA. Portanto, o fim de Bretton Woods também posicionou Wall Street para a reciclagem dos fluxos globais de capital para muito além de qualquer outro centro financeiro e consolidou a capacidade do principal país capitalista de financiar suas dívidas e seus monopólios com praticamente nenhuma restrição.
Segundo, as exportações de capital pelos monopólios avançaram entre as economias avançadas, e – mais dramaticamente, dados os precedentes históricos – nas periferias, onde, hoje, toma lugar a maior parte do trabalho industrial, especialmente em dois países, China e Índia. Terceiro, rápidos saltos tecnológicos foram realizados via as chamadas terceira e quarta revoluções industriais, que turbinaram de forma generalizada a composição orgânica do capital, por exemplo via robótica e inteligência artificial, enquanto criaram também capacidades de logística e comunicação para estender e aprofundar os sistemas globais de valor na indústria e na agricultura (JHA & YEROS, 2019). Quarto, esse processo foi acompanhado pela aceleração das fusões e aquisições em todos os setores – indústria, agricultura, mineração, bancos, seguros, comunicações e outros serviços – com os monopólios ganhando terreno a montante e a jusante da produção para estabelecer o que Samir Amin chamou “monopólios generalizados” (AMIN, 2019).
Quinto, a financeirização dos lucros consolidou-se de forma jamais vista. As companhias industriais tornaram-se dependentes dos lucros financeiros, mesmo contra os lucros industriais, e as dívidas escalaram entre as corporações, governos e famílias, com os Estados Unidos na dianteira e o apoio ativo das autoridades monetárias. Essa política atingiu o nível hoje de obter taxas de juros negativas ao longo da Zona do Euro, Japão e Estados Unidos (em termos reais) – sem consequência para o crescimento. Podemos, de fato, falar do estabelecimento de uma duradoura lógica de financeirização sistêmica, ou do capital monopolista-financeiro (FOSTER, 2010), cujo grande feito foi a perpetuação de um “efeito de riqueza” pela inflação sistêmica dos preços dos ativos, contra os lucros decrescentes na produção. Isso colocou o capitalismo monopolista no suporte à vida e explica sua persistência, senão também a magnitude de seu colapso premeditado.
A financeirização também explica o sexto, e ainda mais crucial, elemento de preocupação: a escalada da acumulação primitiva, de forma mais devastadora nas periferias. Aqui, afinal, é onde o valor das moedas globais centrais está ancorado e que, constantemente ameaça a exprimir lucros, perfurar bolhas e pôr fim ao efeito de riqueza (PATNAIK AND PATNAIK, 2016). A acumulação primitiva adquire diversos formatos: da mais visível apropriação de terras, água, energia e florestas (MOYO, JHA & YEROS, 2019); à privatização dos bens comuns, serviços públicos e material genético; ao aprofundamento da superexploração pelo deslocamento dos custos da reprodução social para as próprias reservas de mão-de-obra em expansão, para as mulheres em particular e as camadas sociais mais oprimidas (MOYO & YEROS, 2005; TSIKATA, 2016; PRASAD, 2016; NAIDU & OSSOME, 2016; JHA, MOYO & YEROS, 2017). Esse é um sistema que depende cada vez mais de trocas desiguais – de trabalho não-equivalente – especialmente do trabalho não-pago da reprodução social. Esse é um subsídio massivo aos lucros monopolistas: se a composição orgânica do capital está crescendo e as taxas de lucro estão encolhendo, a apropriação do trabalho por outros meios também precisa crescer para prevenir os lucros de despencarem ainda mais.
Se investigarmos mais de perto a estrutura das formações sociais periféricas hoje, veremos tendências à proletarização em vigor, mas também o crescimento do trabalho autônomo nos setores informais, concomitante a uma corrida pela reprodução social, que apenas pode funcionar com a intensificação das contradições de gênero, raça, casta e outras conforme as particularidades de cada região do mundo. Encontraremos uma força de trabalho com uma relação instável, periódica e episódica com o trabalho assalariado, em constante fluxo sem chance de obter estabilidade assalariada, ou mesmo de romper definitivamente com a agricultura (ver, especialmente, JHA, MOYO & YEROS, 2017). Isso é o que buscamos conceituar como uma ‘formação social semiproletarizada’ (MOYO & YEROS, 2005; EDITORAL, 2012; MOYO, JHA & YEROS, 2013), baseando-se em análises clássicas sobre a transição para o capitalismo (LENIN, 1982 [1899]; MAO, 2011a [1926]; FANON, 1968 [1961]).
O sétimo e último elemento que precisa ser destacado nesse exercício épico de recuperar lucros monopolistas é a escalada dos gastos de guerra e de sua execução, mesmo depois do fim da Guerra Fria. Esse é, em si, um exercício contraditório: cria enormes pilhas de estoque de equipamento sem objetivo produtivo, ao mesmo tempo em que propulsiona inovações tecnológicas e reforça segurança geoestratégica para os monopólios em todos os cantos do planeta. Os Estados Unidos gastam muito mais em “defesa” do que todos as outras potências militares juntas. Em 2018, o orçamento de defesa dos Estados Unidos atingiu USD 645 bilhões, contra a soma total de USD 575 bilhões da China, Arábia Saudita, Rússia, Índia, Reino Unido, França, Japão e Alemanha (IISS, 2019).
Não é preciso dizer, que a ofensiva neoliberal do último meio século não resolveu a longa crise sistêmica. O capitalismo monopolista subsiste no suporte à vida por uma combinação de produção de alta tecnologia e acumulação primitiva, facilitada pela financeirização e pela guerra. A natureza das contradições fica mais clara por examinar de perto a evolução dos modos de dominação política, ou modos de governo, sob o capitalismo monopolista.
Neocolonialismo: inicial e tardio
É importante reconhecer desde já que, mesmo nos centros do sistema, democracia liberal com sufrágio universal não tem uma história longa. Esse modo de governo passou gradualmente a existir depois da Primeira Guerra Mundial com a expansão do sufrágio feminino, e alcançou seu ápice depois da Segunda Guerra Mundial com a consolidação do Estado de Bem-Estar Social no Norte em geral, e com o fim do Jim Crow nos Estados Unidos. A democracia liberal encontra-se agora em crise profunda, enquanto o fascismo cava seu retorno às burocracias estatais e aos parlamentos. Se a democracia liberal marcou uma vitória histórica para a classe trabalhadora, foi limitada em sua capacidade de servir ao capitalismo monopolista. De fato, sua contradição com o fascismo é não-antagônica, dado que o capital monopolista tem um compromisso apenas superficial com a democracia liberal. Sob a democracia liberal, o capital monopolista opõe-se, sim, ao fascismo, mas tipicamente por via da teoria dos “dois extremos”, pela qual ele defende a democracia liberal como a solução não apenas ao fascismo mas também à esquerda radical. No entanto, é apenas a esquerda radical que representa desafio ao capitalismo monopolista. Explica-se, portanto, a tolerância que o capital monopolista e suas classes de apoio tendem a mostrar em relação ao fascismo na hora do ‘vamos ver’, e sua consequente virada a posições da extrema-direita, especialmente em relação a imigração e guerra, enquanto competem com o fascismo por votos.
No entanto, a democracia liberal dificilmente é o principal modo de governo sob o capitalismo monopolista. Ele se apoiou, para sua sobrevivência não na democracia liberal, mas em modos coloniais de governo, incluindo colônias de exploração, colônias de assentamento, e semicolônias – os três modos básicos de dominação colonial. Até os anos 1960, as democracias liberais centrais – em seu ápice histórico – tinham uma relação muito direta com o colonialismo. Lembre-se que o Tratado do Atlântico Norte (OTAN, 1949) e o projeto integração europeu (os Tratados de Paris e de Roma, respectivamente de 1952 e 1957), que sustentaram a reconstrução econômica e a democracia liberal em sua fase social-democrata, foram implementados sob a base do regime colonial ainda vigente. As condições para uma transição geral para o neocolonialismo maturaram, não obstante, de tal forma que era possível – até preferível, sob pressão – recuar do controle direto das periferias e se utilizar dos mecanismos econômicos dos monopólios para preservar o acesso à agricultura tropical, aos recursos naturais e à mão-de-obra barata. É desse modo, que o neoconialismo evoluiu como um subsistema político para as social-democracias centrais (NKRUMAH, 1965).
Estamos na posição hoje de fazer uma distinção entre neocolonialismo inicial e tardio para esclarecer a longa duração desse último estágio do imperialismo. No neocolonialismo inicial, a independência era ainda uma concessão extraída do capitalismo monopolista pelos movimentos anticoloniais que travaram luta política e armada durante muitas décadas. Conforme essas lutas persistiram e entraram em uma fase de radicalização durante a Guerra Fria, um reposicionamento estratégico pelo capitalismo monopolista se tornou ainda mais necessário. A sobrevivência do Estado de Bem-Estar Social requeria um contínuo escoamento de excedentes para compensar a classe trabalhadora, enquanto a retirada do controle colonial direto libertaria as metrópoles da responsabilidade pelas consequências desse escoamento. Nessa mudança de estratégia, a social-democracia, com poucas exceções, deu suporte sistemático para forças reacionárias, colonos e ditadores contra os nacionalismos radicais nas periferias, ou, mesmo, qualquer nacionalismo que não curvasse a cabeça. Com efeito, os sindicalismos europeu e norte-americano jogaram o “bom policial, mal policial” contra as aspirações de libertação dos povos do Terceiro Mundo (YEROS, 2001).
No entanto, no neocolonialismo inicial, muitos estados periféricos – além dos estados revolucionários de China, Vietnam e Cuba – foram suficientemente radicalizados para manter autonomia substancial e sustentar postura anti-imperialista no espírito de Bandung, sem sucumbir imediatamente aos ditames do domínio neocolonial. E, de fato, o nacionalismo nas periferias libertas geralmente ainda mostrava comprometimento com o desenvolvimento econômico e social, ainda que permanecesse deficitário em seu conteúdo democrático, e mesmo quando debandava para o campo Ocidental. Sua legitimidade decorreu de promessas feitas e parcialmente entregues às enormes populações camponesas, e do restabelecimento da dignidade nacional e civilizacional. Fosse radical ou moderado, o momento nacionalista foi sustentado por tempo considerável em alguns países, especialmente aqueles que haviam conquistado independência mais cedo. Mas a situação virou novamente nos anos 1970, conforme a estagnação econômica e a crise da dívida os atingiu.
Havia também um número significativo de estados periféricos juridicamente independentes que não fizeram a transição para o neocolonialismo nesse momento, não participaram em Bandung ou partilharam de seus ideais, mesmo que tenham demonstrado interesse no desenvolvimento das forças produtivas internamente. Esses foram os estados de assentamento branco da África do Sul e da América Latina, que permaneceram no modo de assentamento colonial de dominação política (também conhecido como “colonialismo interno”) muito tempo depois de obter independência jurídica das metrópoles britânica ou ibérica. Em geral, a transição neocolonial nessas regiões perdurou por décadas depois da Segunda Guerra Mundial, até a derrota dos governos minoritários e regimes militares. Em quase todos os casos, o sufrágio universal sem qualquer qualificação avançou apenas depois da Segunda Guerra Mundial, mas, de novo, a maioria das transições foi abortada pelo recrudescimento do supremacismo branco e por uma série de golpes de Estado. Na maioria dos casos, a transição para o neocolonialismo foi apenas possível sob o neoliberalismo, nessa fase tardia do neocolonialismo, com a África do Sul e o Brasil, em particular, estremecendo o estrangulamento do colonialismo interno simultaneamente (YEROS et al.., 2019).
É de grande significância, ademais, que o fim definitivo aos cinco séculos de dominação colonial europeia tenha transformado as periferias da economia mundial não apenas em estados independentes, mas também em zonas de conflito – como Nkrumah havia previsto – tanto durante a Guerra Fria quanto depois dela. Propriamente falando, a transição ocorreu durante a Terceira Guerra Mundial, nos dois sentidos possíveis do termo: uma terceira Guerra Mundial imperialista e uma guerra contra o Terceiro Mundo. Com frequência, tais guerras são de “baixa intensidade” por sua natureza limitada em termos de abrangência geográfica e das armas convencionais usadas. De todo modo, o resultado foi uma escalada da agressão imperialista, especialmente depois da Guerra Fria, gerando uma série de estados fraturados e ocupados, uma realidade que se instalou em regiões inteiras. Sob essas condições, podemos evidentemente discernir o retorno da forma semicolonial de dominação política (para a qual iremos retornar).
Finalmente, precisa-se ainda enfatizar que naquela rivalidade sistêmica global entre Leste, Oeste e Sul, o movimento de Bandung era a força mais fundamental contra o colonialismo e o imperialismo. Nascido como um movimento de paz e justiça mundial nas ex-colônias da Ásia e da África, a despeito das inevitáveis mudanças em relação à luta armada nos anos 1960, o espírito de Bandung, e o Movimento dos Não-Alinhados que o incorporou, permaneceu como a força civilizatória mais básica no mundo da época. Nkrumah foi coerente de novo em prever que o aprofundamento da dominação neocolonial contra os Estados não-alinhados teria consequências severas para todos, Norte e Sul.
O neocolonialismo tardio é resultado desse impasse. Seus elementos incluem o regime de soberania nacional já estabelecido, mas também o ocaso de Bandung e do sistema soviético e a permanente crise do capitalismo monopolista. O neocolonialismo tardio nas periferias também corresponde politicamente à fase neoliberal da democracia liberal no centro. Sob o neocolonialismo tardio, o capitalismo monopolista-financeiro escalou o escoamento de riquezas das periferias, mas com compensação decrescente para as classes trabalhadoras no centro. Além disso, ele continuou a escalar suas intervenções e a manipular situações de conflito nas periferias, a inventar novamente inimigos estratégicos para justificar a guerra permanente, agora apresentados nos termos apocalípticos do “terror” e do “mal”. O neocolonialismo tardio tem sido marcado pela degeneração do nacionalismo nas periferias na esteira da ‘compradorização’, ou subordinação, da burguesia periférica. A última tem essencialmente se “separado” da nação, como Prabhat Patnaik (1995: 2051) colocou. Esse período tem sido acompanhado do êxodo rural acelerado, da expansão dramática do trabalho informal e vulnerável, da intensificação da crise da reprodução social e da semiproletarização generalizada. É esse quadro que agora constitui a base social periférica de um desgastado regime de soberania nacional.
Semicolonialismo e fascismo
O retorno do fascismo tem ganhado bastante atenção hoje, mas a situação semicolonial, como tal, não. A situação semicolonial é geralmente chamada de muitos outros nomes, sem ter sido entendida como um fenômeno que pertence a essa fase tardia do neocolonialismo. Num estudo publicado há uma década (MOYO & YEROS, 2011), diversas trajetórias de Estados periféricos foram identificadas sob o neoliberalismo, duas das quais estavam, em retrospectiva, situações semicoloniais, embora não tenhamos avançado em adotar tal conceito. Lembre-se que Lenin e seus contemporâneos haviam usado o termo, mas não o haviam desenvolvido (LENIN, 2003 [1917]: cap. 6). Ele estava para ser compreendido como uma “forma transicional”, tendendo à completa dominação colonial, ou um caso de intensa dependência financeira. O conceito recebeu a explanação mais sistemática subsequentemente pelo Partido Comunista Chinês, nos escritos de Mao Tse-tung (2011a[1926], 2011b[1939], 2011c[1940]), onde os padrões subjacentes de acumulação e formação de classe obtiveram significância maior e ficaram associadas ao modo de governo. Entre vários elementos identificados (ver, especialmente, MAO, 2011b[1939]), dois são mais pertinentes aqui:
- o semicolonialismo é baseado num padrão de acumulação específico que se ampara na força extraeconômica e em trocas não contabilizadas pelos mecanismos de mercado, que, no caso chinês, foram entendidas como semifeudais, não propriamente capitalistas, mesmo que o capitalismo tenha por muito tempo se enraizado na China sob a égide de monopólios e potências estrangeiras;
- além dos vários conhecidos mecanismos econômicos, políticos, militares e culturais empregados pelos monopólios e potências estrangeiras, há sob o semicolonialismo a tomada parcial do território por meio da guerra de agressão, imposição de tratados desiguais, instalação de forças militares, e exercício da jurisdição consular dentro do território.
Em Moyo e Yeros (2011), as quatro trajetórias identificadas incluíam Estados “radicalizados”, que implicaram certa retomada do tipo anti-imperialista de Bandung; Estados “reestabilizados” depois de crise, pelo retorno ao controle dos monopólios; Estados “fraturados” que perderam sua coesão territorial-burocrática para rebeldes armados e senhoras da guerra; e Estados e povos ocupados que sucumbiram à guerra de agressão imperialista. Os dois últimos foram concebidos especialmente como trajetórias permeáveis, dado que o fracionamento estatal facilmente leva à intervenção estrangeira e vice-versa, intervenção estrangeira facilmente leva ao fracionamento estatal. Os dois últimos são, de fato, as situações semicoloniais dos dias modernos, convergentes com as duas características básicas indicadas acima. Eles são sujeitos à mais intensa acumulação primitiva, embora não nas condições feudais do passado. E eles estão sujeitos à intervenção militar, posicionamento de forças, arrogação de privilégios consulares e imposição de tratados desiguais. Atualmente, a Ásia do Oeste, o Norte da África, o Sahel, o Chifre, a África Central e o Caribe são regiões onde muitos países podem devidamente ser compreendidos como tendo sucumbido à situação semicolonial – incluindo Iraque, Afeganistão, Síria, Iêmen, Líbia, Mali, República Centro-Africana, Chade, Níger, República Democrática do Congo, Somália, Haiti – com diversos outros na beira do penhasco. Essa é uma tendência real hoje, e um dos principais resultados do desgaste do regime de soberania nacional nessa fase tardia do neocolonialismo. Isso pode até ser visto como uma “forma transicional”, mas não propriamente um retorno ao colonialismo; o objeto de tal transição, se existe, permanece sendo o retorno ao modo neocolonial de governo.
Enquanto isso, dentro da situação neocolonial, tem havido avanço das forças fascistas, que precisam ser examinadas mais de perto. Geralmente, podemos identificar três elementos básicos constitutivos do fascismo, dois dos quais são claramente ressaltados por Amin em seus últimos escritos sobre o fascismo (2011, 2014) e um terceiro pode ser deduzido de sua análise nesses mesmos e como em outros mais gerais (AMIN, 1999). Primeiro, o fascismo emerge como uma resposta política aos problemas de gestão do capitalismo monopolista. Quando o capitalismo monopolista entra em crise sustentada, o fascismo emerge como uma força contra as instituições e práticas da democracia liberal. Dado que as situações nacionais e o pleito social podem diferir significativamente de um lugar para outro, o fascismo pode ser evitado ou derrotado aqui e alí, e as instituições liberais podem ser resgatadas. No entanto, as forças fascistas, mesmo quando marginais, veem sua melhor oportunidade no curso de crises prolongadas e podem até emergir para oferecer ao capital monopolista sua estratégia mais viável de acumulação.
Segundo, o fascismo consiste na rejeição categórica da democracia. Fascismo propõe providenciar salvação contra uma crise crescente resgatando ou reinventando tradições corrompidas e minadas pela democracia liberal. As tradições, em um nível, pertencem àquelas da família e de gênero; em outro, buscam recurso em diferenças raciais, de casta, religiosas, e outras comunais que possam ser matéria de racialização, em que a exaltação de um grupo implica subjugação e segregação ou extermínio de outro. Como tal, os inimigos da tradição e da “nação suprema” sofrem o risco sempre iminente de serem isolados ou removidos, não apenas cooptados ou assimilados, como no liberalismo. O fascismo é assumidamente supremacista.
Terceiro, o fascismo é uma força no impulso imperialista para a dominação mundial. O fato de o fascismo no centro não estar desbravando territórios como no passado colonial, ou que tenha criado raízes nas periferias, não deve nos iludir. O fascismo europeu clássico, sob o regime de soberania imperialista prevalecente naquele momento, consistiu na rejeição categórica da soberania nacional ao longo das regiões periféricas. Se não parece categórico atualmente, é porque o capitalismo monopolista tem meios excepcionais de conter a soberania nacional e precisa apenas reprimi-la esporadicamente. Essa, afinal é a essência do modo neocolonial de dominação e da situação semicolonial. O fascismo ao centro pode buscar a repartição de esferas de influência por outros meios. Contudo, uma das indagações mais recentes diz respeito ao serviço específico que o fascismo periférico presta ao imperialismo hoje.
O fascismo periférico preenche o vazio deixado pelo nacionalismo de Bandung e está intimamente ligado à escalada da acumulação primitiva sob a ofensiva neoliberal. Ainda assim, é diferente do fascismo do centro em três pontos: primeiro, é limitado à nação ou, no máximo, a disputas regionais, não tendo condições para disputar a dominação mundial. Mas, segundo, ele busca alinhamento por sua própria sobrevivência e expansão com o capital monopolista do centro, tornando-se, portanto, um instrumento na buscada dominação mundial. Isso explica porque permanece tão comprometido com o neoliberalismo em sua política econômica. Terceiro, forças fascistas beneficiam-se de espaços liberais para ganhar chão no novo terreno social e político inaugurado pela semiproletarização generalizada. Nessas novas condições, o nacionalismo de Bandung do passado está sendo ultrapassado pelo fundamentalismo Cristão, Islâmico e Hindu – ao longo da África, Ásia e América Latina – que buscam e recebem todos apoio do capital monopolista.
Considerações Finais
A ressurgência do fascismo também avança nos centros, no interior da política liberal e no terreno da degradada e insegura classe trabalhadora – a chamada classe-média – que é essencialmente destituída de consciência histórica mundial. Mesmo que não compensada na dimensão em que era no neocolonialismo anterior, ainda há grande dificuldade por parte dessa classe trabalhadora em imaginar ou de se comprometer com uma aliança em pé de igualdade com os povos trabalhadores do Sul. Mas o capitalismo monopolista e suas tendências fascistas não serão derrotados a menos que uma solidariedade genuína de classes trabalhadoras e povos se estabeleça ao longo do Norte e do Sul – com a qual Samir Amin havia se tornado intensamente preocupado nos últimos anos. Essa mesma falta de consciência histórica também invade teorias que reduzem a crise capitalista a determinantes tecnológicos e noções puras de conflito. O conflito entre capital e trabalho não está dado no capitalismo realmente existente, ele permanece um projeto político de reconhecimento e superação das contradições que prolongam a vida desse sistema moribundo. Um bom ponto de início seria o reconhecimento de que a destruição do movimento de Bandung abriu caminho para a consolidação do neocolonialismo e da degradação da visão alternativa para uma ordem mundial mais civilizada. É isso que, também, pavimentou o caminho para ressurgência do fascismo no próprio centro. Como Malcom X certa vez ressaltou – antecipando por dois anos a alerta de Nkrumah – ‘as galinhas estão voltando para o poleiro’.[1]
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[1] The New York Times, 2 de dezembro de 1963, https://www.nytimes.com/1963/12/02/archives/malcolm-x-scores-us-and-kennedy-likens-slaying-to-chickens-coming.html, acesso em 30 de dezembro de 2019.
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Coronavirus, Lockdown and Alternative
Coronavirus, Lockdown and Alternative
Dinesh Abrol
Introduction
After the completion of forty (40) days of lockdown on the morning of May 5, 2020 the emerging COVID-19 situation due to mismanagement by the Modi government is becoming a cause for concern on several counts for everyone[1]. Today is the second day of lockdown 3.0 that is expected to end on May 17, 2020. and has recorded the biggest single-day jump in the number of coronavirus patients and deaths linked to COVID-19. Three thousand nine hundred (3,900) new cases have so far been reported. 195 COVID-19 patients died in the last 24 hours. This 4th highest spike takes the total to 46,433 COVID-19 cases, including 1,568 deaths. The average daily rate of infection, now below 4% can rise fast.The states that are the biggest cause for worry, both as a source of infection and spread include Maharashtra (high infection rate of about 10.78%, way above the national average), Delhi (almost all districts are affected, with an infection rate of 7.78%), Madhya Pradesh ( 6.4%), West Bengal (testing low, infection rate of over 6%), Gujarat (infection rate of 6.6%) and Uttar Pradesh (testing smaller, with an infection rate of 6.6% and increasing numbers over the past week). There is no information on the number of people who may have succumbed to non-COVID-19 medical conditions and a live dashboard for those numbers, which could well be higher[2].
Lockdown is not the way ahead
Today the Indian Express (Tuesday, May 5, 2020) carried an interview with Dr. Randeep Guleria, Director, All India Institute of Medical Sciences (AIIMS). Among the issues expressed was an honest admission for the first time that “the curve has not shown a downward trend”. He also claimed that the lockdown helped in flattening the curve and provided a buffer for the country to upgrade its medical infrastructure, and also added that “the next four to six weeks will be very important because the lockdown cannot be there forever”. Even while admitting that “the ideal dream would be to have zero cases (the criteria for area to be declared as green zone with no local hotspot areas)”, he also added “that is not happening” soon because “the number of cases is increasing every day”. Of course, as he wanted to sound hopeful, he also claimed that “the rise in the curve is not so sharp and can be handled”.
When he talked about the way ahead, the pathway was clear that “the solution is to identify the areas where the maximum number of cases are coming, and focus on containment to bring down the number of cases, and convert the districts to orange and green zones. To mitigate the economic impact of the lockdown, the reclassification strategy should be more granular, with focus on local hotspot areas rather than an entire district labelled as a red zone”, he suggested while adding that the most important data point to watch out for, ahead of May 17, would be the cases reported in the hotspots and reclassification zones. Recalling the lesson from history of India’s experience with the Spanish Flu, he added that most of the 7 million deaths happened in the second wave after the lifting of lockdown. He underlined that while India’s case count and mortality will remain relatively low, and added that “we will have to learn to live with COVID-19 for quite some time. We will have to have strategies which will work with COVID-19 being around”.
Creating spaces for alternate strategy
With this scenario of rising COVID-19 positive cases the shut door to politics is opening now. Yesterday the media and the Chief Minister (CM) of Delhi too picked up the required courage to say that the lockdown cannot be forever and we need to learn to live with coronavirus”[3]. In the latest statement of JSA-AIPSN, the collaborating networks of peoples’ science movements (PSMs) and of peoples’ health movements (PHMs) released more than 28 joint statements in India since March 25th. The challenge is clearly brought out that how India took 10 days to go from 5000 to 15,000 cases but it has taken only 5 to 6 days to go from 25,000 to 35000 cases (JSA-AIPSN, May 3, 2020, see aipsn.net for news, background papers and statements).
The steps recommended in the JSA-AIPSN statement are clear that the central government should “adopt a framework of cooperative governance for determination of criteria for the identification of hotspot areas and of restriction of movements and activities, guidelines for implementation of relief measures and allocation of resources, deliberate, make the guidelines part of a legal framework which would also mandate functional consultative mechanisms that would have to involve public health expertise, healthcare providers and organizations of working people who all would be affected, and mandate watchdog bodies that ensure that the sweeping powers given under the Disaster Management Act are not misused and that the cooperative framework is maintained.
The JSA-AIPSN statement advocates as a part of the strategy to strengthen the disease surveillance mechanism, with appropriate design for collection, flow and analysis of information to inform decision making at national, state and local levels, not make “Zero case reporting” the exit criteria for lockdowns or the basis for zoning and shun the coercive measures and treat the public in a humane manner and to follow complete transparency in policy making and decision making processes. A strategy of safe human distancing, social solidarity and neighborhood preparedness, involving the practice of door to door volunteer support for motivating the people to learn and live a “Safe and Healthy Life” in the times of corona is advocated. Of course, high risk cases will have to be managed by the governments in ramped up healthcare facilities at the sub district / district level. Low / mild risk residents / workers will have to be supported through the publicly funded efforts with the solidarity committees formed with grassroot volunteers taking charge of the containment, relief, rehabilitation and reconstruction work.
Open, transparent and accountable tools
Screening, monitoring and testing of the residents of these densely populated clusters must be practiced on a regular basis to give courage and confidence to the society as a whole to get on with the normal life. The key to moving forward is, smart and innovative disease monitoring tools and apps provides for the ethical evaluation of the algorithms in use to monitor the movements of targeted publics. The use of digital tools should be governed and supported by appropriate legislation with the privacy considerations taken care of fully before these tools are put into wider use or made mandatory.
Safe sample collection and testing (which should include targeted, opportunistic and rapid testing) would have to be practiced. Humanitarian approach to the quarantine, diagnostic and treatment needs to be rolled out for the management of COVID and co-morbidities. The government needs to promote and champion “voluntary and early disclosure of symptoms with acceptable diagnostic drives and community / neighborhood led quarantine measures in the urban slums and densely populated low-income urban areas. The government must establish integrated neighborhood settlement / contiguous area-based centres for “clinical diagnosis, monitoring and surveillance.
Testing and quarantining (institutional and locally organized) with clear Do’s and Don’ts regarding the principles to be followed by the centres formed at the ward level and not at the district level is the way forward. Dignified and safe facilities need to be provided for the management of low-risk (mild to moderate cases) in community quarantine / primary care facilities. High risk cases will have to be managed at identified secondary health facilities to minimize the number of adverse health outcomes from the densely populated urban areas.
The alternate strategy is an exercise in the adoption of a humanitarian, compassionate and benevolent, non-threatening approach, uncompromisingly safe, transparent and answerable (secure quarantine) support to the quarantined workers, motivation for disclosure through direct cash transfer to the family members of the quarantined workers in order to compensate them for the lost wages of the quarantined (incentivized and wage compensated quarantine). No naming and shaming of the quarantined and their family members would be acceptable.
Name the quarantines as places of community care and provide top class hygiene facilities. Essentials and food would have to be appropriately supplied to the people under quarantine and their family members out of quarantine run by NGOs / CBOs / CSOs. Employment guarantee to those left behind family members who can work to make a living and cash support for non-earning pivotal adult family members consumption is the way ahead.
Opening up of the space for democratic politics
During the lockdown period the political opposition to Modi demonstrated lack of confidence. The politics got suspended. The BJP did open politics. They chose to stigmatize corona virus. Modi has failed the country. Even the government’s experts have started speaking. The number of outbreaks and hotspot areas is growing. The authoritarian leadership is caught in a vicious cycle. The lockdown 3.0 is informed by the approach of there is no alternative (TINA syndrome which was used to implement the policy regime of economic liberalization, privatization and imperialist globalization). The problems with the choice of the pathway of total lockdown are becoming obvious.
The open politics on the part of forces opposed to Modi is getting started. Opening up of the space for democratic narrative on coronavirus containment is essential. The political opposition to Modi will have to change the fearful cognitive mindset inhibiting emergence of systemic thinking enabling a more fruitful and democratic response for the alternate strategy to materialize. Can we seize the moment? How to break the chain of thought which is fueling undemocratic and unsustainable approaches to the governance of pandemic locally in India is the moot point? The political opposition to Modi will have to criticize openly the approach of arbitrarily declaring the whole living or working space as hot spots and waiting for the areas to become COVID free zones. This approach is taking way the civil liberties of the people as a whole.
The authoritarian political narrative is squarely responsible for damaging the livelihoods of the poor. Participation of the neighborhood area / sector / mass and class organizations / social groups-based organizations in the governance with guidelines can help in bringing this virus under the control of people. Poor residents of densely populated areas need to be supported in housing and getting declared as safe green and healthy workers. The virus of social apartheid, stigma and prejudice associated with the threat will have to be contained by opening up the space for democratic politics.
The demand for legislation which will provide for the employers of domestic workers and work spaces employing informal workers to formalize and register contracts and the employers and government jointly taking the responsibility of providing the workers with social protection through the formation of labour welfare boards for all types of occupations and categories of workers. They should be given necessary support to get themselves declared as green workers capable of working in a safe manner in any kind of work place. Working people should be allowed to work with all the precautions and be provided with the appropriately chosen protective gear in the workplaces.
Democratize expertise
The authoritarian political narrative is misrepresenting the sources of crisis caused by coronavirus. With the poor choosing to come out on the street in several large cities are confused and uncertain. The cost of total lockdown for the economy is borne by the poor. They are now coming out on the streets. They are being sent them back to places where it is difficult to live safely. The democratic leadership required for corona governance needs open political spaces to bring down the fear, reduce uncertainty and organize the people for the demonstration of social solidarity beyond providing food for survival. Peoples’ participation in the proposed collaborative efforts required to be undertaken for the implementation of alternate strategy of containment of coronavirus should be encouraged. The people need to be organized through the peoples’ solidarity committees. Purposeful contestations need to be actively encouraged on the way forward on all the relevant fronts-be containment, relief, rehabilitation and reconstruction.
[1] The Communist party of India (Marxist) has reached out to other opposition parties to bring them on a common platform to deliberate on the adverse economic fallout of the lockdown imposed to contain the spread of the COVID-19 pandemic. CPI (M) general secretary Sitaram Yechury said the Union government was getting clueless, and so on (May 5, 2020, The Hindu, Delhi Edition).
[2] See the Edit Page for the write up by Pranab Dhal Samanta entitled “Lock Down on Viral Politics” by in the Economic Times (p 10), the write up by Jacob Koshy with headline “States with high swine flu rate record most COVID-19cases) that points out how the cases of swine flu are already emerging and the same five COVID-19 states also account for majority of H1N1 infections. As per the Ministry of Health and Family Welfare data, the H1N1 virus killed 981 people in 2009 and 1,763 in 2010. The mortality decreased in 2011 to 75 but claimed 405 lives in 2012 and 699 lives in 2013. In 2014, a total of 218 people died from the H1N1 flu. Event post the outbreak, the Ministry data reveals that due to swine flu, the country recorded 265 deaths in 2016, 2,270 in 2017, 1,128 in 2018, 1,218 in 2019 and 28 in 2020. The WHO has declared COVID 19 to be ten times more dangerous than H1N1.
[3] The first set of 6600 cases occurred in 70 days. The latest set happened in 4 days (Hindu, May 1, 2020). Arvind Kejriwal, the CM of Delhi also went ahead to state that the city needs to learn to live with COVID-19, and the space for alternate strategies needs to be opened up and we should be more granular, with focus on the strategy of local hotspot areas containment as the way ahead.
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COVID-19 and food insecurity: what is the role of international cooperation?
Thiago Lima, Atos Dias, Igor Palma, Igor Palma & Lucas Amorim
As in historical times, the catastrophe that unfolds with the outbreak of a pandemic such as the COVID-19 has a great propensity of triggering isolationism, protectionism and unilateralism while at the same time threatening the stability of the International System. It is with this in mind that Director-Generals of the largest United Nations (UN) agencies namely the Food and Agriculture Organization (FAO), World Health Organization (WHO) – and the World Trade Organization (WTO) issued a joint statement, raising concerns about the international food security situation.
In remarks contained in a joint statement issued on the March 31st, entitled “Mitigating Impacts of COVID-19 on Food Trade and Markets” they caution that the pandemic may exacerbate already existing challenges in the global food supply chain if governments globally begin putting in place export barriers on food crops as an attempt to preserve food supplies and to avert looming domestic food shortages. Resultantly, this would in their view cause distortions in food prices making food access almost impossible for the majority of the people in countries which are generally food importers. Potentially, such protectionist measures will also negatively impact the formation of national food stocks for emergency situations making the purchase of food for humanitarian aid by the World Food Program (WFP) difficult.
Urgency for international cooperation
From an International Relations perspective, we are reunited with an old acquaintance: uncertainty at an anarchic international system. According to the Directors the “uncertainty about food availability can spark a wave of export restrictions, creating a shortage on the global market” and “it is at times like this that more, not less, international cooperation becomes vital.” Issues like minimizing uncertainties and ensuring that governments keep their economies’ role in the global agri-food value chain operational are quite critical from the Director’s point of view.
As observed during the 2007/2008 food crisis, several states restricted food exports as a strategy to avert national shortages. In practice, this contributed to shortages in other countries, especially the poorest. Unlike that crisis, however, there is currently no production shortage in sight. The greatest risk relates to breaking the logistics chain for the most basic foods and animal feeds including grains such as wheat, corn, soybeans and rice. This will occur, mainly, because of the restrictions placed by different countries on the movement of people and the flow of commercial activities, as well as by the drop in demand resulting from the brutal slowdown in economic activities.
Thus, abroad international cooperation effort is critical by different countries to identify stages of production and logistics chains in the agri-food sector’s to be classified as essential services. This would eventually exempt these from movement restrictions that aim to prevent the spread of the new coronavirus. As the leaders of the UN agencies state: “In the midst of the COVID-19 lockdowns, every effort must be made to ensure that trade flows as freely as possible, specially to avoid food shortage (…) Now is the time to show solidarity (…)”.Likewise, governments and banks should guarantee resources so that demand does not collapse and logistical bottlenecks can be widened at this critical moment.
The international community’s inaction in the face of the crisis
The appeal for greater cooperation by the leaders of the International Organizations comes up in the face a huge barrier: the United States’ anti-multilateral policy of the Trump administration. Some international cooperation theories argue that liberal arrangements tend to emerge and be kept when the most powerful actors assume disproportionate costs in maintaining the system. Yet, this is a role Washington does not intend to play today.
In the most recent crises such as the Ebola outbreak of 2014 and the financial crisis in 2008, the USA assumed a leading role, a position that it is not playing under the current crisis. What has been witnessed in the past few days has been an expression to withdraw from key institutions such as the World Health Organization. Neither has Beijing been able, or willing, to defend the liberal international order at this time. The European Union has also not called this burden on itself. Previously, the EU countries, at most, have normally sent aid to ex-colonies – and such aid has not been received without criticism, or distrust by some analysts. According to Yuval Noah Harari , the international community seems to be collectively inept in the face of the current threat, and, using his own words, “there seem to be no adults in the room”. One of the symptoms of this reality is the absence of emergency meetings among global leaders to build an action plan capable of combating the pandemic efficiently.
In this context, an element cannot be lost sight of. The great powers are, almost all of them, relatively food self-sufficient at the current moment. In addition, they also have financial and logistical resources (merchant marine, for example) to purchase food in open markets or to take it by force using primitive accumulation. Therefore, they have much lower food vulnerability when compared to developing countries, especially the poorest ones, if the international agri-food interdependence is severely shaken.
The vulnerability of developing countries
What about developing countries? Since the 1990s, dependence on food imports has been growing in these countries. This has been fuelled by the neoliberal agenda which has been encouraging these governments to produce for exports thereby discouraging food production for domestic consumption. According to the advice from the World Bank and the IMF food grains should be imported from international markets, at a cheaper price. In addition, there was an incentive for countries to dismantle their national food stockpile systems, both to monetize the sale of products and to save on the cost of maintaining equipment and food. Thus, they would pay part of their debts and avoid future indebtedness. One effect of this was that, in the 2007/2008 crisis, this worsened world hunger. Since then, it seems that there has been no significant change in this model.
In Brazil, for example, the Bolsonaro administration has started dismantling CONAB, the National Food Supply Company, a state-owned entity that manages national food stocks. Furthermore, Brazil became a net importer of beans and returned to the FAO Hunger Map.
Therefore, if International Organizations continue to press for the maintenance of the functioning of the international agri-food chains as a strategy of guaranteeing the global food security in a context of a very serious economic crisis – which seems correct in this immediate conjuncture – it would even be more important for these bodies to come together and defend, in the short and medium term, agrarian reforms, reducing dependence on food imports, creating food stocks to cope with eventual shortages, as well as socioeconomic programs that strengthen the resilience of rural populations. It is worth remembering that, as a rule, the hungriest people in the world are those who live in rural areas. Therefore, if more local people consume food from their vicinal rural areas, the more they will contribute to mitigating hunger in their countries.
It is still too early to talk about the collapse of the international agri-food system. In several parts of the world, however, evidence is beginning to emerge from agricultural producers who throw their production away, or feed animals with fruits, because there are no markets. The question now is whether economic globalization can still represent a card up the sleeve for the heads of state. On the other hand, it would be very useful for a deglobalization project to be mapped and executed with broad international cooperation, aiming to create food sovereignty wherever possible.
About the Authors
Thiago Lima is a professor in the Department of International Relations and faculty member of the Postgraduate Program in Public Management and International Cooperation at the Federal University of Paraíba, João Pessoa, Brazil.
Atos Dias is a PhD student of Political Science at the Federal University of Pernambuco, Recife, Brazil. He graduated with an MA in Public Management and International Cooperation and a BA in International Relations from the Federal University of Paraíba.
Igor Palma is an MA student of Political Science and International Relations at the Federal University of Paraíba and graduated with a BA in International Relations from the same institution.
Lucas Amorim is an MA student of Political Science and International Relations at the Federal University of Paraíba. He graduated with a BA in International Relations from the Federal University of Uberlândia, Minas Gerais, Brazil.
All authors are members of FomeRI – Research Group on Hunger and International Relations at UFPB
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