Espectros de Crise, Raios de Esperança:
Revolução, Libertação e Desenvolvimento Hoje
Em resposta à crise mundial que atualmente se alarga, a Agrarian South Network (ASN, Rede Sul Agrário) criará uma plataforma para diálogo com o propósito de despertar consciências acerca das lutas de libertação em curso e aprofundara busca por alternativas socialistas entre povos trabalhadores. A pandemia do COVID-19 atingiu a economia mundial já em crise profunda e intensificou suas persistentes contradições. Estamos em um ponto histórico que determinará o curso do século XXI e, de fato, o futuro da humanidade. Em meio aos múltiplos espectros que assolam o mundo, há raios de esperança. A Rede Sul Agrário colocará seus recursos à disposição de movimentos e intelectuais progressistas para construir solidariedades e possibilitar reflexões rigorosas sobre os desafios conforme sua evolução. O tema da Plataforma é “Espectros de crise, Raios de Esperança: Revolução, Libertação e Desenvolvimento Hoje”, e será composto por quatro iniciativas:
- Uma Série de Diálogos a ocorrer online a cada duas semanas, começando em julho de 2020, por um período indefinido de tempo, objetivando manter a rede e organizações parceiras em um processo de reflexão coletiva. O principal idioma será o inglês. Serviços de tradução para outros idiomas serão disponibilizados quando e onde os recursos permitirem. Os principais parceiros para essa iniciativa são The Sam Moyo African Institute for Agrarian Studies (SMAIAS, Zimbabwe) [Instituto Africano de Sam Moyo para Estudos Agrários] e ActionAid (Índia). Parcerias de apoio incluem o Programa de Pós-Graduação em Economia Política Mundial Universidade Federal do ABC (UFABC, Brasil), e outras organizações podem ser convidadas para participar.
- Um Boletim de Pesquisa será publicado mensalmente online, começando em agosto, com curtas intervenções de natureza política ou teórica de não mais de 2.000 palavras. O objetivo é permitir uma troca de ideias organizada e incisiva de forma frequente. Conforme a política de idiomas da ASN, as contribuições serão publicadas em inglês, mas podem ser submetidas em outros idiomas com vistas a passar por tradução quando e onde os recursos permitirem; artigos publicados podem também aparecer em outros idiomas.
- Uma Seção Especial contínua na revista Agrarian South: Journal of Political Economy [Sul Agrário: Revista de Economia Política], com artigos comissionados de natureza política ou teórica de 4.000 a 5.000 palavras, começando em dezembro de 2020. Aplicar-se-á a política de idiomas da ASN.
- Uma Série de Livros Curtos de não mais de 30.000 palavras focada nos desafios da presente crise. A série será intitulada “Revolução, Libertação e Desenvolvimento Hoje” e promoverá pensamento inovador focado em influenciar teoria e prática. Manuscritos poderão ser publicados em inglês, português ou espanhol, e traduções podem ser feitas quando possível. Publicações serão distribuídas gratuitamente de modo eletrônico. Edições impressas limitadas serão disponibilizadas quando e onde os recursos permitirem.
O tema da Plataforma para Diálogo está alinhado com os objetivos anunciados anteriormente pela SMAIAS-ASN 2021 Summer School [Escola de Verão do Instituto Sam Moyo e da ASN de 2021], intitulado Alternativas para o Sul: Libertação, Desenvolvimento e Ecologia”, cujas nota conceitual levantou uma série de questões fundamentais e que permanecem centrais para a presente inciativa (www.agrariansouth.org/news). A Plataforma para Diálogo focalizará a evolução rápida dos efeitos da pandemia do COVID-19 e da queda dramática da produção mundial, ruptura dos mercados e escalada das dívidas. A Plataforma promoverá diálogo sustentado sobre as emergentes lutas de libertação e avaliará o potencial para transições socialistas com renovada atenção para a planificação para o desenvolvimento.
Informações adicionais e novidades podem ser obtidas por nossa mídia social, portal e e-mail:
@Agrarian_South, facebook.com/agrariansouthnetwork, www.agrariansouth.org, agrariansouth@gmail.com.
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NOTA EDITORIAL 1 de julho de 2020
Espectros de Crise, Raios de Esperança: Revolução, Libertação e Desenvolvimento Hoje
A pandemia emergiu em uma conjuntura crucial. A economia mundial vem caminhando para uma quebra financeira mais definitiva sob os altos níveis de endividamento que persistiram depois da crise de 2008 e uma queda no crescimento manufatureiro desde 2018, em meio a uma guerra comercial. Nenhuma solução duradoura para a crise foi possível. E pela natureza profunda das contradições acumuladas de nosso tempo – incluindo mudanças climáticas e prolongada transição demográfica – a presente crise sistêmica será como nenhuma outra. Não há perspectiva para se lançar um novo e longo ciclo de acumulação. As taxas de lucro nos setores produtivos nos centros estão em declínio desde meados da década de 1960, enquanto o projeto neoliberal se arrasta com uma baixa taxa de crescimento geral, sustentada por lucros financeiros e novas rodadas de acumulação primitiva. Não há, do mesmo modo, chance de entregar prosperidade à população mundial de 7.5 bilhões de pessoas, estimada a alcançar 11 bilhões até o final do século. Metade da força de trabalho hoje já funciona como reserva de mão-de-obra e subsiste em condições degradadas e vulneráveis. As gerações porvir dos povos trabalhadores enfrentarão nada mais do que miséria e genocídio. O grau de monopólio e financeirização do capitalismo no presente estágio gera um sistema obsoleto, em permanente crise.
A pandemia do COVID-19 acelerou o curso das contradições. Permanecemos em meio à longa transição do domínio colonial à situação neocolonial, marcada nesse estágio tardio por soberanias desgastadas, escalada da agressão imperialista e o retorno do fascismo. O projeto neoliberal prometeu paz e prosperidade desde a década de 1980, porém se concentrou em conter e reverter os ganhos da descolonização. A crise de 2008 foi um marco central no recrudescimento de forças declaradamente supremacistas ao redor do mundo. Nos escombros da utopia neoliberal, o caminho se abriu para forças neofascistas ao redor do Norte e do Sul para instrumentalizar esperanças e medos populares, tipicamente por meio de fundamentalismos religiosos, com a conivência ou apoio declarado dos monopólios e altas finanças. Um verdadeiro eixo da supremacia branca se estendeu do Atlântico Norte a Estados de assentamento europeu na América Latina e ao Estado Sionista no Oriente Médio, convergindo com fascismos reavivados no Leste Europeu e os fundamentalismos Islâmico e Hindu na África e na Ásia. O choque do COVID-19 explorou medos e preconceitos, mobilizou clivagens raciais, de casta, religiosas, étnicas e de gênero, criou estigmas e buscou bodes expiatórios. Respostas fascistas preencheram o vácuo da má gestão e planejamento e da inabilidade de adaptar as diretivas de saúde pública a condições locais e nacionais. A comparação entre emergências de saúde pública e “guerra” com gastos “inevitáveis” permitiu ainda mais que alguns governos autorizassem legislações repressivas e autoritárias e empregassem o aparato estatal contra os pobres, em aglomerações urbanas de alta densidade e áreas rurais desgastadas. A pandemia revelou a convergência entre clivagens de classe e opressões de raça e casta, e preconceitos contra imigrante ou não-nativos.
A crise pandêmica expôs também as dimensões do trabalho precário ao redor do mundo. De fato, revelou toda a estrutura das formações sociais no Sul e a crise da reprodução social em curso. Metade da força de trabalho do mundo, em torno de 6 bilhões de pessoas trabalhadoras, localizadas principalmente no Sul, não vive de, ou inteiramente de um salário, e subsiste em economias informais e em condições de vulnerabilidade. Mais de dois terços dessa força de trabalho semiproletarizada consiste em mulheres. E quando se incluem os dependentes dessa força de trabalho, especialmente a juventude ascendente na África, Ásia, América Latina e Caribe, isso compreende a maior parte da população mundial. Os povos trabalhadores das periferias contemporâneas subsistem ao lado de trabalhadores/as assalariados/as mais seguros/as e ocupam variadas posições como camponeses/as, agricultores/as sob contrato, trabalhadores/as agrícolas sazonais, pescadores/as, trabalhadores/as informais em zonas urbanas, trabalhadores/as autônomos/as, trabalhadores/as de prestação de serviço delivery, trabalhadores/as em domicílio, trabalhadores/as domésticos, migrantes domésticos/as e estrangeiros/as, indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais. A diferença entre emprego e desemprego se tornou mais nebulosa do que nunca. Trabalhadoras mulheres são particularmente impactadas pela extensiva segmentação de gênero no trabalho e pela responsabilidade em relação ao trabalho reprodutivo não-pago. Tal formação social constitui a espinha dorsal da economia mundial, onde as rendas têm sido drasticamente reduzidas para conter a inflação mundial e reforçar em outros lugares o vórtice consumista, e onde os custos da reprodução social em escala global são deslocados para prover subsídios sistêmicos ao capital, apropriando-se do trabalho reprodutivo não-pago. É notável, além disso, que a estrutura e crise dessa formação social cria persistentes “questões fundiárias”, em torno das quais lutas naturalmente gravitam. Essas devem escalar conforme o curso da crise. Agregando-se ao roubo colonial da terra a apropriação contínua de terras pelos monopólios financeiros, agroindustriais e imobiliários, e na ausência de empregos decentes e serviços sociais, a terra se torna um lugar persistente de luta, o recurso-chave para a produção e reprodução que se estende por todos os territórios residenciais, agrícolas, indígenas, quilombolas e tradicionais.
A depressão econômica que agora se desenrola será mais severa do que em qualquer momento já previsto – ou mesmo presenciado antes – dadas as realidades das formações sociais contemporâneas. De acordo com as estimativas da Organização Internacional do Trabalho, os lockdowns simultâneos em março representaram o fechamento parcial ou completo de quatro a cada cinco estabelecimentos ao redor do mundo. A redução das horas trabalhadas em meados de 2020 é estimada a corresponder a 300 milhões de empregos em tempo integral, impactando de forma mais severa trabalhadores e trabalhadoras de economias informais, mulheres e seus dependentes. A persistente precarização do trabalho e o avanço da economia de prestação de serviços delivery, com práticas perniciosas, como contratos de zero-horas, já estavam alcançando um nível de crise. Trabalhadores/as que antes da crise não eram reconhecidos/as como trabalhadores/as precários/as encontraram-se em sérias dificuldades conforme a demanda por seus serviços entrou em colapso. Autônomos/as e pequenos/as empreendedores/as, que absorvem a maior parte da força de trabalho em setores-chave, como varejo e logística, estão enfrentando perdas massivas. Produtores/as camponeses/as estão enfrentando perdas de produção e renda conforme as cadeias de suprimentos são rompidas. A superexploração escalou-se entre trabalhadores/as rurais, trabalhadores/as em domicílio e domésticos/as, vasta maioria das quais são mulheres. Trabalhadores/as migrantes têm sido forçados a andar longas distâncias até suas casas ou ficam impelidos a trabalhar sob condições altamente opressivas. Uma nova categoria de “trabalhadores/as essenciais” emergiu – nas áreas de saúde, saneamento, processamento alimentar, manufatura e logística – frequentemente mandados ao trabalho sem equipamento de proteção. O trabalho essencial, reprodutivo não-pago intensificou-se pelo fechamento das escolas, desaquecimento das atividades econômicas e serviços de saúde, enquanto a violência doméstica escalou.
Os espectros que assolam o mundo são de magnitudes genocidas. Mas há raios de esperança que redimem valores humanistas básicos de solidariedade e serviço social. Programas emergenciais de amplo suporte de renda para os mais vulneráveis e proteção para imigrantes foram implementados, mesmo sob observância dos mais improváveis governos. A consciência do fracasso do sistema de lucro na proteção de cidadãos de uma calamidade na saúde pública está avançando. Novas demandas estão ganhando voz a favor da produção e mercados locais – desde alimentos a ventiladores etc. – e pelo planejamento estatal no suporte a comunidades locais. Falsos dilemas em torno da dicotomia de “saúde pública versus economia”, que se impuseram em muitos casos, foram também evitados em outros, onde o distanciamento social foi buscado concomitantemente à proteção social, planejamento centralizado e participação comunitária. Em alguns países, autoridades nacionais e subnacionais responderam de forma rápida e eficiente, seja porque tiveram experiência recente com planejamento contra pandemia, seja por investimentos de longo prazo em sistemas públicos de saúde ou declarado comprometimento social, mesmo na ausência de infraestrutura adequada. Mas em muitos outros casos, as linhas de frente foram ocupadas por movimentos sociais, ONGs, comunidades e organizações religiosas que têm provido comida e socorro aos/às mais vulneráveis. Comunidades organizam-se internamente para cuidar dos vizinhos e vizinhas, enquanto cooperativas agrícolas canalizaram doações de alimentos a áreas rurais e urbanas. A solidariedade social ganhou nova vida e ímpeto. Movimentos de massa estão se levantando contra o fascismo e em defesa de alternativas solidárias. Políticas insurrecionais e solidariedades internacionais estão se intensificando, como mostrado de forma tão clara na insurgência de batalhas contra o racismo, desencadeadas pela brutalidade policial nos Estados Unidos em meio a pandemia.
Estamos em uma conjuntura crucial em que uma mudança radical de direção é possível pela justiça mundial e paz, para as gerações presentes e futuras. O momento da mudança é agora, mas a transição é longa. Se há algo que o século XXI nos ensinou é que o potencial das lutas de libertação não será realizado sem transição ao socialismo, do mesmo modo que a transição socialista não manterá seu curso sem lutas vibrantes de libertação. Alguma forma de “desglobalização” é agora inevitável, no entanto continuará sujeita à competição monopolista e de guerra imperialista a menos que a transição socialista se enraíze. Nós entendemos transição socialista a significar a superação da lei capitalista do valor operando em escala mundial, dirigida por lucros e rendas monopolistas, agressão imperialista, acumulação primitiva e polarização neocolonial. A questão permanece: como desconectar-se da economia global com uma orientação socialista capaz de sustentar a libertação? Para a maior parte da população no Sul, tal desconexão levanta uma série de outras questões há muito tempo suprimidas ou cooptadas pelo neoliberalismo. Como perseguir um planejamento científico centralizado para o desenvolvimento? Quais formas de propriedade coletiva, cooperativismo e poder popular são necessárias? Como encontrar um novo equilíbrio entre campo e cidade? Como garantir reprodução social digna e a rápida transformação das relações de gênero? Como prover acesso seguro à terra para trabalhadores/as rurais e urbanos/as e autonomia para indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais? Como exercer controle sobre recursos naturais para o bem comum e à altura dos desafios das mudanças climáticas? Como obter autossuficiência coletiva na agricultura, indústria, tecnologia e defesa estratégica? Como se engajar em solidariedade internacional com as forças progressistas no Norte?
Tais questões têm implicações para a mobilização e conscientização entre movimentos, que, com frequência, encontram o povo trabalhador fragmentado entre lutas rurais e urbanas ou questões sociais específicas. Há uma clara e urgente necessidade de novas perspectivas de libertação contra o neocolonialismo e uma nova moralidade socialista em termos de raça, casta e gênero, e dos desafios ecológicos de nossos tempos.